Autor: CARNEVALE, Marcos Carnevale Ignácio da Silva*
Artigo publicado na Revista PAINEL - A E A A R P - Ponto de Vista: Página 10
http://www.aeaarp.org.br/revistas/BmYHumwBnnjLKPg/painel%20175.pdf
ASSOCIAÇÃO DE ENGENHARIA ARQUITETURA E AGRONOMIA DE RIBEIRÃO PRETO
ANO XII, Nº 175, OUTUBRO DE 2009
*Advogado no Rio de Janeiro e Pós-Graduado em Direito Público (áreas de concentração Constitucional, Administrativo e Tributário), e em Direito Civil e Processo Civil, com docência, pela Universidade Estácio de Sá.
*Advogado no Rio de Janeiro e Pós-Graduado em Direito Público (áreas de concentração Constitucional, Administrativo e Tributário), e em Direito Civil e Processo Civil, com docência, pela Universidade Estácio de Sá.
INTRODUÇÃO
No Brasil, o serviço de abastecimento de água é tido como serviço público e, mais que isso, como serviço público essencial, posto que se correlaciona com os direitos à vida, saúde e dignidade da pessoa humana, garantidos constitucionalmente. Isto, porque ninguém sobrevive sem água e, nas grandes cidades, a manutenção de uma rede de escoamento sanitário está atrelada ao serviço de fornecimento de água tratada.
O Estado, como responsável por proteger o cidadão em relação aos seus direitos e garantias elencados na Constituição Federal de 1988, e em legislação pertinente, estabeleceu que a água é bem público, no art. 20, da Contituição Federal de 1988 (CF/88), afastando o domínio particular e instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos, através da Lei 9.433/97, notadamente, no seu art. 1º, inciso I, que informa que "a água é um bem de domínio público". Assim, esta classificação garante a todos os cidadãos o direito a ter acesso a água.
Em virtude de polêmicas quanto a este serviço e sua forma de cobrança, se deveria ser por taxa (é obrigatório pagar) ou por tarifa (se você quiser pode não contratar o serviço), com o advento da Lei nº 11.445, de 05 de janeiro de 2007, Lei das Diretrizes Nacionais para o Saneamento Básico, estabeleceu-se que o abastecimento de água e esgoto sanitário são espécies dos serviços gerais de saneamento básico e, portanto, devem ser remunerados preferencialmente na forma de tarifas e não como taxa de serviço.
O QUE DIZ A LEI SOBRE O SERVIÇO PÚBLICO PRESTADO POR CONCESSIONÁRIA
A regulação do tema tem como sede principal a Constituição Federal que, em seu art. 175, estabelece as diretrizes gerais às quais estes prestadores de serviços estão submetidos, ao prestar os serviços públicos em nome do Estado, dispondo:
Art. 175 - Incumbe ao poder público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.
Parágrafo único - A lei disporá sobre:
I - o regime das empresas concessionárias e permissionárias de serviços públicos, o caráter especial de seu contrato e de sua prorrogação, bem como as condições de caducidade, fiscalização e rescisão da concessão ou permissão;
II - os direitos dos usuários;
III - política tarifária;
IV - a obrigação de manter serviço adequado.
Como se percebe, impõe-se uma série de regras, tais como a obrigatoriedade da licitação para as chamadas concessionárias ou permissionárias da execução dos serviços, como também indica o que será definido em lei quanto ao contrato que regerá a concessão ou permissão, os direitos dos usuários e, muito relevante, a política tarifária a ser implementada para o serviço.
Para a proteção do cidadão, o serviço público é assegurado, regulado e controlado pelo Estado, em face de sua essencialidade ao desenvolvimento da sociedade, e deve seguir princípios que encontram-se na lei, no art. 37, da CF/88, combinado com os princípios especificados no art. 6º, da lei 8.987/95.
Constituição da República Federativa do Brasil – 1988
Art. 37 - A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (...)
Lei 8.987/95
Art. 6º. Toda concessão ou permissão pressupõe a prestação de serviço adequado ao pleno atendimento dos usuários, conforme estabelecido nesta Lei, nas normas pertinentes e no respectivo contrato.
§ 1º. Serviço adequado é o que satisfaz as condições de regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas.
§ 2º. A atualidade compreende a modernidade das técnicas, do equipamento e das instalações e a sua conservação, bem como a melhoria e expansão do serviço.
§ 3º. Não se caracteriza como descontinuidade do serviço a sua interrupção em situação de emergência ou após prévio aviso, quando:
I - motivada por razões de ordem técnica ou de segurança das instalações; e,
II - por inadimplemento do usuário, considerado o interesse da coletividade.
Os princípios do art. 37, da CF serão harmônica e sistematicamente conjugados com os princípios do art. 6º, da lei 8.987/95, quando da prestação do serviço, sendo eles: o princípio da regularidade, da continuidade, da eficiência, da segurança, da atualidade, da generalidade, da cortesia, e da modicidade, ou seja, na hora de prestar o serviço o Poder Público tem que cumprir com tudo isso.
Desta forma, vejamos o que diz, especialmente, o princípio da modicidade das tarifas, que terá grande relevância na discussão enfrentada mais adiante, no que concerne à tarifa progressiva do DAERP:
Princípio da modicidade: Este princípio, praticamente impõe ao Estado o dever de fixar e monitorar o valor da tarifa, e também da taxa de serviço público, em patamar que viabilize o acesso da coletividade ao serviço público. Ou seja, a contraprestação do usuário deve ser fixada em valor razoável, dentro de sua capacidade de suportá-la, sem afetar sua capacidade econômica e seu patrimônio.
Levando em consideração os preceitos acima discutidos, passamos a analisar o modelo de cobrança do DAERP e vejamos se este respeita o que diz a lei.
O MODELO DO DAERP
Os que defendem o modelo de cobrança através de tarifa progressiva, dizem que aquele que consome mais água é mais abastado e, por isso, como política social, deve pagar mais para custear o acesso daquele cidadão de menor poder aquisitivo. Também defendem que aquele que é um “GASTADOR”, ou seja, um sujeito que desperdiça água, deve pagar mais caro.
Entretanto, esta afirmação não é de todo correta, não é possível dizer com toda certeza que quem consome mais água demonstra sinais de riqueza e, que toda aquela residência que consome muito é porque se gasta demasiada água. A tarifa progressiva do DAERP, no bojo de seu modelo, traz um incremento de valores nos preços do serviço que, para muitos cidadãos, conscientes de seus consumos, estará ferindo o princípio da modicidade, que garante que o serviço deverá ter preços acessíveis ao cidadão e, assim, adequar-se a sua capacidade econômica de pagar pelo serviço.
O modelo do DAERP emprega tarifas progressivas, para uso residencial, por M3, que vão de um consumo mínimo de 10M3, com preço total de R$11,50 até 100M3, que impõe uma cobrança de R$971,15 para quem possua este gasto mensal. Vejamos abaixo na tabela 1, adaptada do próprio site da Concessionária (setembro/09), os valores para os consumos até 30M3 e quanto representam de aumento percentual da tarifa base de R$11,50 para cada tarifa seguinte. E, vejamos também qual o preço final do serviço por M3 gasto:
Tabela 1
A primeira vista nos parece muito coerente, ou seja, se um indivíduo gasta até 10M3 por mês, vai pagar pelo Valor Total do serviço R$11,50, se gastar 11M3 vai pagar R$13,45, se gastar 12M3, pagará R$17,35, se gastar 20M3, pagará R$42,20, e assim por adiante. Os respectivos aumentos percentuais para estes consumos serão de 17%, 34% e 51%, e para os que gastam 20M3 a tarifa é 267% mais cara. E nesta esteira o preço médio do M3 tratado vai aumentando, conforme vemos na tabela 1.
Esta progressividade seria perfeita para coibir os abusos daquele cidadão inconsciente, que gasta muita água, se os consumos fossem assim de simples, entretanto, a análise não pode ser feita simplesmente M3 a M3. Isto porque os consumos têm que ser medidos segundo a constituição de cada família, se de 2, 3, 4, 5 pessoas ou mais, ou mesmo se o cidadão mora sozinho, e de acordo a um consumo médio aceitável. Do contrário os cidadãos conscientes e cumpridores de suas obrigações e que não desperdiçam água, estarão sendo prejudicados, e outros que são gastadores poderão se beneficiar de tal modelo de cobrança.
Existem pesquisas sobre o consumo diário ideal de água por um indivíduo em condições normais, que deveria ser de 150 litros/dia[1], há outras análises que indicam que a necessidade pode chegar a 400 litros/dia[2]. Os que defendem tal consumo de 150 litros, o fazem inspirados em estatísticas mundiais, feitas pela ONU, que considera que “o consumo médio ideal para suprir as necessidades humanas é em torno de 110 litros/habitante/dia”[3].
Tais estudos são apenas estimativos e, em muitos casos, poderão ser por demais conservadores, pois a ONU utilizando-se de dados mundiais e perfazendo médias, estará desprezando fatores importantes, tais como, seguramente, nos países mais frios o consumo de água por habitante será menor que nos países tropicais, onde faz calor e, naturalmente, se consome além desta média de 110 litros/habitante/dia.
Ou seja, para criar uma tarifa progressiva é necessário atentar para estes parâmetros de consumo. Assim, uma vez sabedores destes consumos, vamos analisar o caso de Ribeirão Preto.
Primeiramente, para nossa análise, temos que estabelecer um consumo razoável para uma pessoa comum, imaginemos então que uma pessoa possa consumir 165 litros/dia, que é um consumo conservador se pensarmos nas cidades de clima quente, nas necessidades diárias de banho, lava mãos, descarga no banheiro, escovação de dentes, cozinha, para matar a sede e etc, das diferentes características de nossos cidadãos, ou seja, crianças tendem a consumir mais água, adultos que trabalham fora consomem menos que os que estão em casa e idosos também tem diferentes necessidades. Isso significa que, com este consumo de 165 litros/dia, em um mês de 30/31 dias, uma pessoa pode consumir algo em torno de 5M3/mês. Desta forma, vejamos na tabela abaixo (tabela 2), com a respectiva composição familiar em números (N), quanto às diferentes famílias, em número de pessoas, vão consumir em M3/mês e, em relação ao valor total do serviço do DAERP, quanto custará para cada família o preço médio do serviço por M3. E, finalmente, quanto representará este preço médio em aumento percentual, para cada composição familiar.
Usando os consumos acima mencionados (5M3/pessoa/mês – coluna A), sem discutir se razoáveis ou não para Ribeirão Preto, e começando nossa análise pela coluna B, podemos ver que uma família composta de 2 pessoas, onde cada uma consuma 5M3/mês, ou seja, um total 10M3/mês (coluna C), a um valor total do serviço do DAERP de R$11,50 (coluna D), o preço médio do M3 para esta família (ou para esta residência) será de R$1,16 (coluna E). Já para a família de 4 pessoas, onde cada uma consuma 5M3/mês, a um valor total do serviço do DAERP de R$42,20, o preço médio do M3 para esta família passa para R$2,13. Ao passo que, se o indivíduo mora sozinho, e consome 1, 3, 5 ou 9 M3, ele também é penalizado, porque o preço médio do serviço do DAERP em M3 para esta pessoa é de R$ 2,32.
Assim, sob esta análise, não parece justa uma tarifa por M3 de R$2,32 para aqueles cidadãos conscientes, que moram sozinhos, que gastam moderadamente, em torno de 165 litros/dia (5M3/mês), já que esta tarifa média é mais cara (100%) do que para aquela residência onde moram duas pessoas. Tampouco é justo, para aquela grande família de 6 pessoas, que também consomem moderadamente, pagar 162% (ver coluna F) a mais que o preço básico da primeira tarifa medida pelo DAERP, a de 10M3, ou seja, eles consomem tanto quanto qualquer pessoa, mas porque sua família é mais numerosa pagam mais.
O que o Poder Público precisa revisar, é que o custo de tratar um M3 é o mesmo para os M3 adicionais, o DAERP gasta o mesmo cloro, usa os mesmos funcionários, tem o mesmo custo administrativo, tanto para entregar 1M3 quanto para entregar 30M3, assim, não pode ser que para um indivíduo o M3 custe R$1,16 e para outro indivíduo, porque sua família é maior, lhe custe o mesmo M3, R$3,05, como no caso da família de 6 pessoas. Onde está a razoabilidade, onde está a proporcionalidade, onde está a modicidade da tarifa do serviço público, que deve ser garantida ao cidadão por força de lei?
Neste diapasão do modelo do DAERP, poderemos ter uma família de 3 pessoas, abastada, com poder aquisitivo acima da média, morando em lugar nobre, pagando menos pelo M3 (R$1,43), do que aquela família que mora na comunidade pobre, com 6 pessoas, pagando R$3,05/M3 para ter a mesma água.
Assim, o Poder Público em Ribeirão Preto e o DAERP devem atentar para a composição de sua tabela progressiva, que atinge diretamente os cidadãos comuns, que conformam a maioria dos consumidores, pois pertencem à categoria residencial e que, neste modelo de tarifa, estão sendo tratados de maneira desigual, sem levar em conta seu real gasto por pessoa e, principalmente, sua capacidade de pagar por um bem tão importante para a sua própria subsistência, a água, que é dever do governo disponibilizar para a população.
REFERÊNCIAS
1. SABESP. Consumo e perda de água na cidade de São Paulo. Indicadores e dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento, ano referência 2004. Disponível em: http://www.sabesp.com.br, Acesso em 27 fev. 2009.
2. TV CULTURA. Programa de uso Racional da Água SABESP. Disponível em: http://www.tvcultura.com.br/aloescola/ciencias/agua-bemlimitado/agua-bemlimitado2.htm, Acesso em 27 fev. 2009.
3. ISA. Consumo e perda de água na cidade de São Paulo. Campanha de Olho nos Mananciais, Pela preservação das fontes de água de São Paulo, 2007.