quarta-feira, 17 de julho de 2013



AS RELAÇÕES RACIAIS NO BRASIL NA COMPOSIÇÃO DA SOCIEDADE BRASILEIRA SEGUNDO O PENSAMENTO DE GILBERTO FREYRE, ORACY NOGUEIRA E FLORESTAN FERNANDES

 
 

Marcos Carnevale Ignácio da Silva

 



RESUMO


  

Este trabalho pretende discorrer sobre os pensamentos destes renomados autores, abordando sua visão sobre as relações perpetradas pela sociedade colonial no que se refere às relações, principalmente entre brancos, negros e seus descendentes, abordando os aspectos principais das obras de cada pensador e sua influência na formação da sociedade brasileira.

 


PALAVRAS-CHAVE: relações raciais, escravidão, sociabilidade, preconceito, classes.

 


INTRODUÇÃO


  

Veremos nesta análise das ideias principais de cada autor, uma progressão de pensamentos, no que se refere às relações raciais, que constata o otimismo romântico de Gilberto Freyre, perpassando pelo pensamento sistemático do quadro de referência para interpretação das relações raciais de Oracy Nogueira e, finalmente, pelas ideias de Florestan Fernandes, que desmistifica o caráter harmonioso da escravidão no Brasil, defendido por Freyre.

Gilberto Freyre, em Casa-Grande e Senzala, de 1933, apresenta sua visão do Brasil patriarcal, da casa-grande, da influência cultural portuguesa, das relações permissivas entre brancos e negros, as paixões e excessos, deixando a visão biologisante de autores anteriores a seu trabalho, implementando uma visão culturalista. Ele compara o patriarcalismo nordestino com o dos americanos do Sul e os vê próximos, dando aos valores da casa-grande e da senzala uma interpretação quase romântica das relações raciais naquela sociedade, para ele, sem conflitos. Exalta os excessos sexuais perpetrados por senhores e escravos. Entretanto, este autor não aponta para uma passagem a uma sociabilidade mais ampla em nível nacional, concentrando sua visão na sociedade que crescia, tendo como alicerce a casa-grande e a senzala.

Oracy Nogueira, ao tratar das relações raciais em seus estudos, logo no início de sua obra, Preconceito racial de marca e preconceito racial de origem, de 1954, descreve a situação racial brasileira, no que se refere ao negro (e ao mestiço de negro), defendendo que três correntes explicam o tema: 1) a corrente afro-brasileira, a que deram impulso Nina Rodrigues e Arthur Ramos, podendo ser caracterizada como aquela corrente que dá ênfase ao estudo do processo de aculturação, preocupada em determinar a contribuição das culturas africanas à formação da cultura brasileira; 2) a dos estudos históricos, que procura mostrar como ingressou o negro na sociedade brasileira, a receptividade que encontrou e o destino que nela tem tido, corrente esta em que Gilberto Freyre é o representante principal; e 3) a corrente sociológica que, sem desconhecer a importância dos estudos feitos sob as duas perspectivas,  já mencionadas, se orienta no sentido de desvendar o estado atual das relações entre os componentes brancos e de cor (seja qual for o grau de mestiçagem com o negro ou o índio) da população brasileira. Seu estudo se desenvolve abordando temas que definem como se dão estas relações sociais e, para isso, utiliza-se do que ele chamou de “quadro de referência para interpretação do material sobre relações raciais no Brasil”.

Por fim, a obra Integração do Negro na Sociedade de Classes, de Florestan Fernandes, publicada em 1965, originariamente foi sua tese de cátedra em sociologia e representa uma mudança de inclinação na perspectiva das análises de Florestan sobre as questões raciais no Brasil. Ele situa a problemática na transição da ordem social escravocrata e senhorial para o desenvolvimento posterior do capitalismo, ilustrando a condição de marginalidade dos negros e dos mulatos. Seu universo de análise é a cidade de São Paulo, e representa um retorno ao tema da pesquisa promovida pela Unesco entre os anos de 1949 a 1951, que foi feita em parceria com Roger Bastide[1].  Este estudo revelou um amadurecimento sobre o processo de constituição do Brasil, situando a problemática do negro na passagem da sociedade escravista para a sociedade de classes, onde a exclusão social dos negros era evidente, por tratar-se São Paulo do primeiro centro urbano especialmente burguês, regido por mentalidade mercantil, iniciativa individual e liberalismo econômico, ingredientes que respaldavam o progresso naquele período.
  


1. GILBERTO FREYRE E A VISÃO CULTURALISTA HARMONIOSA DAS RELAÇÕES RACIAIS BRASILEIRAS


 


Casa-Grande e Senzala, de Gilberto Freyre (51, ed. rev. São Paulo: Global, 2006) é um marco teórico da passagem entre o pensamento dos defensores da análise racionalista ou racialista, inaugurando quanto às relações raciais no Brasil e a formação da sociedade brasileira, um pensamento apoiado naquilo que se chamaria a “escola culturalista”. Freyre defendia que a miscigenação era algo positivo, e que havia uma harmonia nas relações entre brancos e negros e também índios, ao menos no plano teórico.

Ele descreve a formação na “América tropical (de) uma sociedade agrária na estrutura, escravocrata na técnica de exploração econômica, híbrida de índio e, mais tarde, de negro na composição”[2]. Explica que o português teve facilidade em empreender a colonização, pois seu passado étnico de “povo indefinido entre a Europa e a África”[3] lhe deu esta predisposição singular.

Baseado na sua história “o que se sente em todo esse desadoro de antagonismo são as duas culturas, a europeia e a africana, a católica, e a católica e a maometana, a dinâmica e a fatalista, encontrando-se no português, fazendo dele, de sua vida, de sua moral, de sua economia, de sua arte, um regime de influencias que se alternam, se equilibram ou se hostilizam”[4].

Com relação ao Brasil, Freyre defendia que os portugueses que aqui chegaram, “não o indispunham, aliás, escrúpulos de raça, apenas preconceitos religiosos (isso) foi para o português vantagem na sua obra de conquista e colonização dos trópicos. Vantagem para a sua melhor adaptação, senão biológica, social”[5]. Isso então estaria intimamente ligada a sua teoria da visão harmoniosa das relações entre negros e brancos, na opinião desenvolvida pelo autor.

Freyre parte, então, de um argumento econômico para explicar as relações raciais na formação da estrutura social. Ou seja, foi a monocultura latifundiária que manteve o senhor, os escravos e os demais agregados unidos naquelas relações interpessoais. Esta “sociedade colonial no Brasil, principalmente em Pernambuco e no Recôncavo da Bahia, desenvolveu-se patriarcal e aristocraticamente à sombra das grandes plantações de açúcar”[6]. “No Brasil a colonização particular, muito mais que a ação oficial, promoveu a mistura de raças, a agricultura latifundiária e a escravidão”[7]. “A família, não o individuo, nem tampouco o Estado, nem nenhuma companhia de comércio é, desde o século XVI, o grande fator colonizador no Brasil”[8]. “A casa-grande foi o centro de união da sociedade, completada pela senzala, formando um sistema econômico, social, político, religioso e inclusive de relações sexuais. A família colonial reuniu, sobre a base econômica da riqueza agrícola e do trabalho escravo, uma variedade de funções sociais e econômicas”[9].

A casa-grande seria então o símbolo da inexistência de conflito entre senhores e escravos. Pois ao dividirem o mesmo espaço entre a casa-grande e a senzala, tinham suas distâncias sociais reduzidas com as constantes relações que mantinham, inclusive sexuais, o que resultou em uma miscigenação que corrigiu a distância social entre negros e brancos no Brasil.

Entretanto, esta miscigenação também trouxe a “desvantagem tremenda da sifilização. Começaram juntas, uma a formar o brasileiro - talvez o tipo ideal do homem moderno para os trópicos, europeu com sangue negro ou índio a avivar-lhe a energia; outra, a deformá-lo”.[10] “A sifilização do Brasil resultou, ao que parece, dos primeiros encontros, alguns fortuitos, de praia, de europeus com índias. Não só de portugueses como de franceses e espanhóis. Mas, principalmente, de portugueses e franceses. Degredados, cristãos-novos, traficantes normandos de madeira de tinta que aqui ficavam, deixados pelos seus para irem se acamaradando com os indígenas, e que acabavam muitas vezes tomando gosto pela vida desregrada no meio de mulher fácil e à sombra de cajueiros e araçazeiros.”[11]

Em sua visão harmoniosa, Freyre afirmava que o negro-escravo era bem alimentado pelos seus senhores para que esse garantisse a produção agrícola e especialmente açucareira. Esta faceta harmoniosa resultou numa influência genética do povo africano que contribuiu para criar sub-raças brasileiras que se destacaram em beleza e vigor físico, como exemplo: mulatas, baianas, crioulas, quadraronas, as oitavanas, cabras de engenho, fuzileiros navais, capoeiras, capangas, atletas, estivadores, jagunços, cangaceiros.”[12]

Assim, a formação da sociedade brasileira se deu fundamentalmente pelas relações raciais, baseadas em uma miscigenação sem preconceitos, pelo patriarcado e pela interpenetração das culturas. Ou seja, esta dinâmica que se processava entre as relações da casa-grande e da senzala agiam de forma a equilibrar os antagonismos da sociedade, e era exatamente neste equilíbrio que se pautava a união e se formava a sociedade. De fato, a perspectiva do triângulo racial de onde se tornavam possíveis as mais variadas combinações, sobretudo sexuais, deixa escapar a concepção de que as culturas simples de índios e negros se subjugariam à complexidade da cultura do branco, o que demarca a hierarquia da estrutura social.

Casa-Grande e Senzala é uma obra importantíssima para entendermos o que realmente aconteceu no Brasil, do seu descobrimento ao processo de colonização, além da ação do colonizador frente ao índio e, também, como aconteceu a escravidão em nosso país. É uma obra marcante, que viria a sofrer severas críticas com o passar dos anos de sua publicação, provocando  com que vários autores dialogassem sobre as relações raciais na formação de nossa sociedade.

 



2. ORACY NOGUEIRA E AS 12 PROPOSIÇÕES PARA AS RELAÇÕES RACIAIS NO BRASIL


 

No seu texto, comparando Brasil e Estados Unidos, Oracy Nogueira relaciona a lógica e o funcionamento do preconceito racial com critérios distintos de classificação social, exorta que nos Estados Unidos, o preconceito está relacionado à descendência; no Brasil, o preconceito está mais expresso na cor da pele. Ou seja, que dependem do ethos de cada sistema cultural considerado.

Segundo sua análise, “considera-se como preconceito racial uma disposição [ou atitude] desfavorável, culturalmente condicionada, em relação aos membros de uma população, aos quais se têm como estigmatizados, seja devido à aparência, seja devido a toda ou parte da ascendência étnica que se lhes atribui ou reconhece. Quando o preconceito de raça se exerce em relação à aparência, isto é, quando toma por pretexto para as suas manifestações os traços físicos do indivíduo, a fisionomia, os gestos, o sotaque, diz-se que é de marca; quando basta a suposição de que o indivíduo descende de certo grupo étnico para que sofra as consequências do preconceito, diz-se que é de origem.”[13]

Portanto, para tratar das relações raciais na formação da sociedade brasileira, impossível é não fazer referência, e repisar, o quanto resumido seja possível, o “quadro de referência” de Oracy Nogueira. “Assim, entre o preconceito racial de marca e o preconceito racial de origem, podem ser apontadas as seguintes diferenças”:[14]

 

1. Quanto ao modo de atuar: O preconceito de marca determina uma preterição, o de origem, uma exclusão incondicional dos membros do grupo atingido em relação a situações ou recursos pelos quais venham a competir com os membros do grupo discriminador. No Brasil, um clube recreativo, pode opor maior resistência à admissão de um indivíduo de cor que à de um branco, porém, se o indivíduo de cor contrabalançar a desvantagem da cor por uma superioridade inegável, em inteligência ou instrução, poderá levar o clube a lhe dar acesso. Já nos Estados Unidos, ao contrário, as restrições impostas ao grupo negro, em geral, se mantêm, independentemente de condições pessoais como a instrução, a ocupação, ou mesmo se o negro for PHD.

 

2. Quanto à definição de membro do grupo discriminador e do grupo discriminado: No Brasil, o preconceito é de marca, e o limiar entre o tipo que se atribui ao grupo discriminador e o que se atribui ao grupo discriminado é indefinido. Assim, a concepção de branco e não-branco varia, no Brasil, em função do grau de mestiçagem, de indivíduo para indivíduo, de classe para classe, de região para região. Nos Estados Unidos, ao contrário, o branqueamento, pela miscigenação, por mais completo que seja, não implica incorporação do mestiço ao grupo branco, para todos os efeitos sociais, o mestiço continuará sendo um "negro".

 

3. Quanto à carga afetiva: onde o preconceito é de marca, ele tende a ser mais intelectivo e estético; onde é de origem, tende a ser mais emocional e mais integral, no que toca à atribuição de inferioridade ou de traços indesejáveis aos membros do grupo discriminado. Assim, no Brasil, a intensidade do preconceito varia em proporção direta aos traços negroides, e tal preconceito não é incompatível com os mais fortes laços de amizade ou com manifestações incontestáveis de solidariedade e simpatia. Nos Estados Unidos, o preconceito tende a ser antes emocional e irracional que intelectivo e estético, assumindo o caráter de antagonismo ou ódio intergrupal. Por isso mesmo, suas manifestações são mais conscientes, tomando a forma de exclusão ou segregação intencional da população negra, em relação aos mais diversos aspectos da vida social – segregação ocupacional, residencial, escolar, em instituições religiosas, culturais, recreativas e de assistência social e sanitária, em logradouros públicos, veículos e outros recintos de acesso público. Em qualquer querela entre um indivíduo de cor e um branco, o público tende a se dividir em dois grupos, cujas atitudes e comportamento são largamente determinados pela filiação racial.

 

4. Quanto ao efeito sobre as relações interpessoais: onde o preconceito é de marca, as relações pessoais, de amizade e admiração cruzam facilmente as fronteiras de marca (ou cor); onde o preconceito é de origem, as relações entre indivíduos do grupo discriminador e do grupo discriminado são severamente restringidas por tabus e sanções de caráter negativo. Assim, no Brasil, um indivíduo pode ter preconceito contra as pessoas de cor, em geral, e, ao mesmo tempo, ser amigo particular, cliente ou admirador de determinada pessoa de cor, sem que isso cause espécie ou implique uma mudança de atitude ou de conceito das demais pessoas em relação a ele, pois que não envolve uma redefinição de atitude ou de ponto de vista de sua parte. Nos Estados Unidos, o branco que mantém relações de amizade com pessoas de cor é pejorativamente chamado de negro-lover ou de "negro voluntário", além de estar sujeito a sanções mais drásticas. A pessoa branca que se casa ou se une com uma de cor, socialmente, passa a ser negra, tornando-se objeto de discriminação e sendo relegada ao mundo social dos negros.

 

5. Quanto à ideologia: onde o preconceito é de marca, a ideologia é, ao mesmo tempo, assimilacionista e miscigenacionista, onde é de origem, ela é segregacionista e racista. No Brasil, há uma expectativa geral de que o negro e o índio desapareçam, como tipos raciais, pelo sucessivo cruzamento com o branco; e a noção geral é de que o processo de branqueamento constituirá a melhor solução possível para a heterogeneidade étnica do povo brasileiro. Nos Estados Unidos, a expectativa da maioria, em relação às minorias sujeitas a discriminação, é de que se mantenham endogâmicas e nucleadas, constituindo cada qual um mundo social à parte, de modo a se imiscuírem o mínimo possível com aquela, cuja "pureza" racial e característicos se considera necessário preservar.



6. Quanto à distinção entre diferentes minorias: onde o preconceito é de marca, o dogma da cultura prevalece sobre o da raça; onde o preconceito é de origem, dá-se o oposto. Consequentemente, onde o preconceito é de marca, as minorias menos endogâmicas e menos etnocêntricas são favorecidas, onde o preconceito é de origem, ao contrário, há maior tolerância para com as minorias mais endogâmicas e mais etnocêntricas. No Brasil, frequentemente, se ouve alegar, como agravante, em relação aos japoneses, sírios e outros grupos de imigrantes, que os mesmos "não se casam com brasileiros" e procuram preservar seu próprio patrimônio cultural – língua, religião, costumes. Nos Estados Unidos, ao contrário, quando se comparam duas ou mais minorias, frequentemente se aponta como atenuante o "estar ela satisfeita consigo mesma" e, portanto, o "não estarem os seus membros procurando impor-se aos outros grupos". De um modo geral, nos Estados Unidos, há maior tolerância (que no Brasil) para com imigrantes que falam, mesmo em público, sua própria língua, que conservam sua própria música etc.

 

7. Quanto à etiqueta: onde o preconceito é de marca, a etiqueta de relações inter-raciais põe ênfase no controle do comportamento de indivíduos do grupo discriminador, de modo a evitar a susceptibilização ou humilhação de indivíduos do grupo discriminado, onde é de origem, a ênfase está no controle do comportamento de membros do grupo discriminado, de modo a conter a agressividade dos elementos do grupo discriminador. Assim, no Brasil, não é de bom tom "puxar o assunto da cor", diante de uma pessoa preta ou parda. Evita-se a referência à cor, do mesmo modo como se evitaria a referência a qualquer outro assunto capaz de ferir a susceptibilidade do interlocutor. Nos Estados Unidos, a ênfase da etiqueta está em expressar a assimetria das relações entre brancos e negros. Assim, o branco exige que o negro o chame de mister e a ele se dirija mencionando-lhe o sobrenome, porém, o negro tem de se conformar em ser chamado pelo branco pelo primeiro nome, sem o uso daquela expressão. O comportamento de brancos e negros, uns para com os outros, é estritamente regulamentado, de modo a salientar a desfavorável posição dos últimos.

 

8. Quanto ao efeito sobre o grupo discriminado: onde o preconceito é de marca, a consciência da discriminação tende a ser intermitente; onde é de origem, tende a ser contínua, obsedante. Em geral, o homem de cor, no Brasil, toma consciência aguda da própria cor nos momentos de conflito, quando o adversário procura humilhá-lo, lembrando-lhe a aparência racial, ou por ocasião do contato com pessoas estranhas, podendo passar longos períodos sem se envolver em qualquer situação humilhante, relacionada com a identificação racial. Nos Estados Unidos, a consciência da própria identificação racial, por parte do negro, é contínua, permanente, e envolve três tendências que se interpenetram: 1) uma preocupação permanente de auto-afirmação; 2) uma constante atitude defensiva; e 3) uma aguda e peculiar sensibilidade a toda a referência, explícita ou implícita, à questão racial.

 

9. Quanto à reação do grupo discriminado: onde o preconceito é de marca, a reação tende a ser individual, procurando o indivíduo "compensar" suas marcas pela ostentação de aptidões e característicos que impliquem aprovação social tanto pelos de sua própria condição racial (cor) como pelos componentes do grupo dominante e por indivíduos de marcas mais "leves" que as suas; onde o preconceito é de origem, a reação tende a ser coletiva, pelo reforço da solidariedade grupal, pela redefinição estética etc. Portanto, o que vemos no Brasil, é que a experiência decorrente do "problema da cor" varia com a intensidade das marcas e com a maior ou menor facilidade que tenha o indivíduo de contrabalançá-las pela exibição de outras características ou condições – beleza, elegância, talento, polidez etc. Nos Estados Unidos, a luta do negro, como negro, seja qual for sua aparência, é, sobretudo, uma luta coletiva. As próprias conquistas individuais são vistas como verdadeiras tomadas de novas posições em nome do grupo todo. Em todo o contato com pessoas brancas, mesmo nas organizações destinadas a combater as restrições raciais e a melhorar as relações das diferentes minorias entre si e com a maioria, o indivíduo de cor assume o papel de representante – vanguardeiro ou diplomata – de seu próprio grupo.

 

10. Quanto ao efeito da variação proporcional do contingente minoritário: onde o preconceito é de marca, a tendência é se atenuar nos pontos em que há maior proporção de indivíduos do grupo discriminado, onde é de origem, ao contrário, a tendência é se apresentar sob forma agravada, nos pontos em que o grupo discriminado se torna mais conspícuos pelo número. Com efeito, no Brasil, a impressão generalizada é a de que os indivíduos de cor esbarram com manifestações mais frequentes e ostensivas de preconceito em São Paulo, onde constituem uma cota mais reduzida sobre o conjunto da população, do que, por exemplo, na Bahia ou no Rio de Janeiro.  Nos Estados Unidos, ao contrário, o negro está muito mais sujeito a restrições nos pontos em que representa uma cota mais numerosa da população.

 

11. Quanto à estrutura social: onde o preconceito é de marca, a probabilidade de ascensão social está na razão inversa da intensidade das marcas de que o indivíduo é portador, ficando o preconceito de raça disfarçado sob o de classe, com o qual tende a coincidir, onde o preconceito é de origem, o grupo discriminador e o discriminado permanecem rigidamente separados um do outro, em status, como se fossem duas sociedades paralelas, em simbiose, porém irredutíveis uma à outra. Nos Estados Unidos, é tal a impermeabilidade que se observa entre os grupos, branco e negro, que o emprego do termo "casta" com relação a tais grupos e, portanto, com referência à organização social norte-americana, tem sido aceito por muitos estudiosos destas relações.

 

12. Quanto ao tipo de movimento político a que inspira: onde o preconceito é de marca, a luta do grupo discriminado tende a se confundir com a luta de classes; onde é de origem, o grupo discriminado atua como uma "minoria nacional" coesa e, portanto, capaz e propensa à ação conjugada. Assim, no Brasil, os movimentos sociais e políticos que têm apelado para a consciência de grupo da população de cor, como fonte de motivação para o proselitismo, têm resultado num fracasso. Nos Estados Unidos, a minoria negra não apenas atua como se fosse uma nacionalidade em luta por um status, como tem sido equiparada a uma minoria nacional por estudiosos e políticos.

 

Contextualizando o “quadro de referência” de Oracy Nogueira, podemos entender que o preconceito que prevalece no Brasil é aquele baseado no preconceito de cor, sendo chamado por ele de preconceito de marca, que é exercido em relação à aparência física dos indivíduos discriminados. E nos Estados Unidos, diferentemente, o preconceito racial que prevalece é aquele baseado na origem, sendo chamado por ele de preconceito de origem, quando o preconceito acontece por dedução de que o discriminado tem uma ascendência de certo grupo étnico.

Enfim, concluindo, estes são os dois tipos ideais desenvolvidos por Oracy Nogueira para apontar a existência do preconceito racial presente no Brasil, que influenciou diretamente na formação de nossa sociedade.

 

3. FLORESTAN FERNANDES, O DILEMA E O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL NAS RELAÇÕES RACIAIS NO BRASIL


 

A obra, A Integração do negro na sociedade de classes, de Florestan Fernandes, teve papel fundamental ao desmistificar o caráter harmonioso da escravidão no Brasil, pregado por Gilberto Freyre. No seu texto, Florestan busca comprovar que, após o fim do modo de produção escravista, os negros continuaram marginalizados e sem condições claras de ascender socialmente na sociedade de classes que, então, se constituía no país. Estabelece o conceito do “mito da democracia racial” e posiciona o que seria o dilema racial brasileiro.

          Logo na introdução, o autor apresenta o ponto crucial segundo sua visão, nada romântica, das consequências da desagregação do regime escravocrata na formação de uma futura sociedade brasileira. Com a abolição, os antigos “donos” dos escravos “foram eximidos da responsabilidade pela manutenção e segurança dos libertos...” “O liberto se viu convertido, sumária e abruptamente, em senhor de si mesmo...” “embora não dispusesse de meios materiais e morais para realizar essa proeza, nos quadros de uma economia competitiva.”[15] (p. 29)

As relações raciais, na ótica do autor, vão aparecer no item 2, do capítulo III, intitulado O dilema racial brasileiro. Mas, antes de chegar ao dilema das raças no Brasil, neste capítulo III ele constrói, no item 1, a ideia do Mito da democracia racial, depois de uma intensa análise que abordou desde dados demográficos, que apontam uma imensa maioria branca (dados demográficos de São Paulo), até chegar à abordagem sobre a heteronomia racial na sociedade de classes, explicitando o quanto os negros e mestiços estavam sujeitos à vontade de uma coletividade branca.

O “Mito da democracia racial”, abordado no item 1., explica que “a perpetuação, em bloco, de padrões de relações raciais elaborados sob a égide da escravidão e da dominação senhorial, tão nociva para o homem de cor, produziu-se independentemente de qualquer temor, por parte dos brancos”.[16] Defende que, “por paradoxal que pareça, foi a omissão do branco – e não a ação – que redundou na perpetuação do status quo ante.”[17] Assim, segundo o autor, esta omissão que não provocou na sociedade brasileira, como em outros países, sentimentos de intolerância e de ódios raciais foi que manteve o homem branco ileso da ameaça do homem negro quanto a posição daquele na estrutura de poder da sociedade. Era como se todo aquele padrão de relações raciais da escravidão, ainda que ela não existisse mais, fosse legítima pela sua própria história na sociedade brasileira. Assim, “no bojo desses padrões de comportamentos, passaram para a nova era histórica e se revitalizaram normas de velha etiqueta de relações raciais, distinções e prerrogativas sociais que [naturalmente] proporcionavam direitos e garantias sociais das raças em presença às posições que seus componentes ocupavam na estrutura de poder da sociedade, representações que legitimavam, tanto racial, quanto material e moralmente, tais distinções e prerrogativas”[18] e, de alguma maneira, “acorrentava-se o homem de cor aos grilhões invisíveis de seu passado, a uma condição sub-humana de existência e a uma disfarçada servidão eterna.”[19]

Desta forma, Florestan Fernandes vai definir o completo significado do dilema racial brasileiro, como a impossibilidade de as relações de classe suplantarem as desigualdades raciais, absorvendo-as. Nesse sentido, é importante observar o que diz o próprio autor:

 

“Delineia-se claramente, assim, o dilema racial brasileiro”. Visto em termos de uma das comunidades industriais em que o regime de classes sociais se desenvolveu de modo mais intenso e homogêneo no Brasil, ele se caracteriza pela forma fragmentária, unilateral e incompleta com que esse regime consegue abranger, coordenar e regulamentar as relações raciais. Estas não são totalmente absorvidas e neutralizadas, desaparecendo atrás das relações de classes. Mas sobrepõe-se a elas, mesmo onde e quando as contrariam, como se o sistema de ajustamentos e de controles sociais da sociedade de classes não contivesse recursos para absorvê-las e regulá-las socialmente.

Caracterizando-se o dilema racial brasileiro deste ângulo, ele aparece como um fenômeno estrutural de natureza dinâmica. Ele se objetiva nos diferentes níveis das relações raciais. Por isso, seria fácil reconhecê-lo nos lapsos das ações dos indivíduos que acreditam “não ter preconceito de cor”; nas inconsistências das atitudes, normas e padrões de comportamento inter-racial; nos contrastes entre a estereotipação negativa, as normas ideais de comportamento e os comportamentos efetivos nos ajustamentos raciais; nos conflitos entre os padrões ideais da cultura, que fazem parte do sistema axiológico da civilização brasileira; nas contradições entre os tipos ideais de personalidade básica modelados através desta civilização, etc. Mas, ele se originou de uma causa geral e comum: os requisitos estruturais e funcionais da sociedade de classes só se aplicam fragmentária, unilateral e incompletamente às situações de convivência social em que os socii se apresentam, se consideram e se tratam como brancos e negros.

Em outras palavras, as estruturas da sociedade de classes não conseguiram, até o presente, eliminar, normalmente, as estruturas preexistentes na esfera das relações raciais, fazendo com que a ordem social competitiva não alcance plena vigência na motivação, na coordenação e no controle de tais relações.”[20]

 

Em outras palavras, Florestan conclui de forma muito clara e objetiva de que não existe democracia racial no Brasil e que isto não passa de uma ideologia que busca ocultar a face racista e da dominação de classes que é praticada, naturalmente, pelas elites brasileiras, com um fundo legitimado em sua própria gênese heteronômica.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS


  

Como sabemos, Gilberto Freyre desenvolve Casa-Grande e Senzala nos idos dos anos 30, com uma perspectiva a partir da sua posição de homem branco e senhor. Ainda que ele tenha enaltecido a presença do Negro, sua nostalgia pela cultura patriarcal transparece sua posição social, pois este tempo, na verdade, foi muito difícil para a maioria dos brasileiros, principalmente para o Negro. Ele defende que a casa-grande foi o centro de coesão da sociedade. Que a casa-grande, completada pela senzala, representava todo um sistema econômico, social, político, religioso e sexual. E que a miscigenação existente corrigiu a distância social entre negros e brancos no Brasil.

Já Oracy Nogueira, cerca de 20 anos depois, construiu um quadro de referência, segundo sua ótica, que pudesse ser aplicado como um conjunto de hipóteses aos estudos das relações raciais no Brasil. Criou doze proposições que contribuíram para estabelecer as características diferenciadoras de dois tipos de preconceito e de dinâmica das situações raciais na formação da sociedade brasileira, comparando-a com a sociedade norte-americana. Para isso, dá o nome de "preconceito de marca" à forma como tais características se apresentam no Brasil e de "preconceito de origem" à maneira pela qual elas se constituem nos Estados Unidos.

Cada autor em seu tempo e, finalmente, Florestan Fernandes defendeu a tese, A integração do negro na sociedade de classes, em 1964, para ingressar na cadeira de Sociologia I da USP, sua perspectiva sobre a desintegração das relações escravistas que representavam a tradição, e a passagem para uma modernidade edificada sobre o alicerce da sociedade de classes, indicava a situação de marginalidade que enfrentava o negro dentro do sistema de relações sociais. Neste sentido, em A integração do negro na sociedade de classes, se contrapõe à ideia de democracia racial defendida em Casa-Grande e Senzala.

Enquanto Freyre interpreta as relações raciais no Brasil como harmoniosas e permissivas, Florestan atenta para a inadequação do preconceito e da discriminação num país que se deseja moderno, e Oracy tentou estabelecer uma metodologia de análise destas relações.

Vemos que o pensamento social brasileiro nunca conseguiu chegar a um consenso com relação às questões raciais no país, cada um em seu tempo. A linha que demarca alteridades entre pretos e brancos foi tratada diferentemente por cada autor, explicitando seus pensamentos, do mais otimista (Freyre), do pragmático (Oracy), ao pessimista realista (Florestan).


BRAZILIAN SOCIAL THOUGHTS:

THE RACIAL RELATIONSHIP IN BRAZIL IN THE COMPOSITION OF THE BRAZILIAN SOCIETY BASED ON THOUGHTS FROM GILBERTO FREYRE, ORACY NOGUEIRA E FLORESTAN FERNANDES

 

 ABSTRACT


 


This paper aims to expound the thoughts of these renowned authors and discussing his views on relations perpetrated by colonial society as regards relationship, especially among whites, blacks, and their descendants, covering the main aspects of the works from each thinker and his influences on formation of the Brazilian society.

 

 

 

KEYWORDS: race relations, slavery, sociability, prejudice, classes.

 

 


NOTAS BIBLIOGRÁFICAS


 



[1] Francês, Roger Bastide (1898-1974) chegou ao Brasil em 1938 para ocupar a cátedra de Sociologia I, no Departamento de Ciências Sociais da Universidade de São Paulo deixada vaga pelo professor Claude Lévi-Strauss; Bastide aqui esteve até 1984, quando partiu definitivamente para a França onde foi lecionar primeiramente na École Pratique des Hautes Etudes, 6e Section, hoje École des Hautes Études en Sciences Socielies; nomeado em seguida para a Universidade de Paris, cátedra de Sociologia, também foi durante mais de dez anos professor no Institut des Hautes Études de l 'Amérique Latine. Florestan Fernandes assumiu a vaga com a saída de Bastide.
[2] FREYRE, Gilberto. Casa-Grande e Senzala. 51 ed. rev. São Paulo: Global, 2006, p. 65.
[3] Ibden, p. 66.
[4] Ibden, p. 69.
[5] Ibden, p. 74-75.
[6] Ibden, p. 79.
[7] Ibden, p. 80.
[8] Ibden, p. 81.
[9] Ibden, p. 85.
[10] Ibden, p. 110.
[11] Ibden, p. 111.
[12] Ibden, p. 55.
[13] NOGUEIRA, Oracy. Preconceito racial de marca e preconceito racial de origem: sugestão de um quadro de referência para a interpretação do material sobre relações raciais no Brasil, p. 292. In. Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 19, n. 1.
[14] Ibden, p. 293-304.
[15] FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classe. ed. 1. vol. 1. Globo, 2008, p. 29
[16] Ibden, p. 304.
[17] Ibden, p. 305.
[18] Iden, p. 305.
[19] Ibden, p. 309.
[20] Ibden, p. 571-572.