AS
RELAÇÕES RACIAIS NO BRASIL NA COMPOSIÇÃO DA SOCIEDADE BRASILEIRA SEGUNDO O
PENSAMENTO DE GILBERTO FREYRE, ORACY NOGUEIRA E FLORESTAN FERNANDES
Marcos
Carnevale Ignácio da Silva
RESUMO
Este
trabalho pretende discorrer sobre os pensamentos destes renomados autores,
abordando sua visão sobre as relações perpetradas pela sociedade colonial no
que se refere às relações, principalmente entre brancos, negros e seus
descendentes, abordando os aspectos principais das obras de cada pensador e sua
influência na formação da sociedade brasileira.
PALAVRAS-CHAVE:
relações raciais, escravidão, sociabilidade, preconceito, classes.
INTRODUÇÃO
Veremos nesta análise das
ideias principais de cada autor, uma progressão de pensamentos, no que se
refere às relações raciais, que constata o otimismo romântico de Gilberto
Freyre, perpassando pelo pensamento sistemático do quadro de referência para
interpretação das relações raciais de Oracy Nogueira e, finalmente, pelas
ideias de Florestan Fernandes, que desmistifica o caráter harmonioso da
escravidão no Brasil, defendido por Freyre.
Gilberto Freyre, em Casa-Grande e Senzala, de 1933,
apresenta sua visão do Brasil patriarcal, da casa-grande, da influência
cultural portuguesa, das relações permissivas entre brancos e negros, as
paixões e excessos, deixando a visão biologisante de autores anteriores a seu
trabalho, implementando uma visão culturalista. Ele compara o patriarcalismo
nordestino com o dos americanos do Sul e os vê próximos, dando aos valores da
casa-grande e da senzala uma interpretação quase romântica das relações raciais
naquela sociedade, para ele, sem conflitos. Exalta os excessos sexuais
perpetrados por senhores e escravos. Entretanto, este autor não aponta para uma
passagem a uma sociabilidade mais ampla em nível nacional, concentrando sua
visão na sociedade que crescia, tendo como alicerce a casa-grande e a senzala.
Oracy Nogueira, ao tratar das
relações raciais em seus estudos, logo no início de sua obra, Preconceito racial de marca e preconceito racial
de origem, de 1954, descreve a situação racial brasileira, no que se refere
ao negro (e ao mestiço de negro), defendendo que três correntes explicam o
tema: 1) a corrente afro-brasileira, a que deram impulso Nina Rodrigues e
Arthur Ramos, podendo ser caracterizada como aquela corrente que dá ênfase ao
estudo do processo de aculturação, preocupada em determinar a contribuição das
culturas africanas à formação da cultura brasileira; 2) a dos estudos
históricos, que procura mostrar como ingressou o negro na sociedade brasileira,
a receptividade que encontrou e o destino que nela tem tido, corrente esta em
que Gilberto Freyre é o representante principal; e 3) a corrente sociológica
que, sem desconhecer a importância dos estudos feitos sob as duas perspectivas,
já mencionadas, se orienta no sentido de
desvendar o estado atual das relações entre os componentes brancos e de cor
(seja qual for o grau de mestiçagem com o negro ou o índio) da população
brasileira. Seu estudo se desenvolve abordando temas que definem como se dão
estas relações sociais e, para isso, utiliza-se do que ele chamou de “quadro de
referência para interpretação do material sobre relações raciais no Brasil”.
Por fim, a obra Integração do Negro na Sociedade de Classes,
de Florestan Fernandes, publicada em 1965, originariamente foi sua tese de
cátedra em sociologia e representa uma mudança de inclinação na perspectiva das
análises de Florestan sobre as questões raciais no Brasil. Ele situa a
problemática na transição da ordem social escravocrata e senhorial para o
desenvolvimento posterior do capitalismo, ilustrando a condição de
marginalidade dos negros e dos mulatos. Seu universo de análise é a cidade de
São Paulo, e representa um retorno ao tema da pesquisa promovida pela Unesco
entre os anos de 1949 a 1951, que foi feita em parceria com Roger Bastide[1].
Este estudo revelou um amadurecimento
sobre o processo de constituição do Brasil, situando a problemática do negro na
passagem da sociedade escravista para a sociedade de classes, onde a exclusão
social dos negros era evidente, por tratar-se São Paulo do primeiro centro
urbano especialmente burguês, regido por mentalidade mercantil, iniciativa
individual e liberalismo econômico, ingredientes que respaldavam o progresso
naquele período.
1. GILBERTO FREYRE E A VISÃO CULTURALISTA HARMONIOSA DAS RELAÇÕES
RACIAIS BRASILEIRAS
Casa-Grande
e Senzala, de Gilberto Freyre (51, ed. rev. São Paulo: Global, 2006)
é um marco teórico da passagem entre o pensamento dos defensores da análise
racionalista ou racialista, inaugurando quanto às relações raciais no Brasil e
a formação da sociedade brasileira, um pensamento apoiado naquilo que se
chamaria a “escola culturalista”. Freyre defendia que a miscigenação era algo
positivo, e que havia uma harmonia nas relações entre brancos e negros e também
índios, ao menos no plano teórico.
Ele descreve a formação na
“América tropical (de) uma sociedade agrária na estrutura, escravocrata na
técnica de exploração econômica, híbrida de índio e, mais tarde, de negro na
composição”[2].
Explica que o português teve facilidade em empreender a colonização, pois seu
passado étnico de “povo indefinido entre a Europa e a África”[3]
lhe deu esta predisposição singular.
Baseado na sua história “o que
se sente em todo esse desadoro de antagonismo são as duas culturas, a europeia
e a africana, a católica, e a católica e a maometana, a dinâmica e a fatalista,
encontrando-se no português, fazendo dele, de sua vida, de sua moral, de sua
economia, de sua arte, um regime de influencias que se alternam, se equilibram
ou se hostilizam”[4].
Com relação ao Brasil, Freyre
defendia que os portugueses que aqui chegaram, “não o indispunham, aliás,
escrúpulos de raça, apenas preconceitos religiosos (isso) foi para o português
vantagem na sua obra de conquista e colonização dos trópicos. Vantagem para a
sua melhor adaptação, senão biológica, social”[5].
Isso então estaria intimamente ligada a sua teoria da visão harmoniosa das
relações entre negros e brancos, na opinião desenvolvida pelo autor.
Freyre parte, então, de um
argumento econômico para explicar as relações raciais na formação da estrutura
social. Ou seja, foi a monocultura latifundiária que manteve o senhor, os
escravos e os demais agregados unidos naquelas relações interpessoais. Esta
“sociedade colonial no Brasil, principalmente em Pernambuco e no Recôncavo da
Bahia, desenvolveu-se patriarcal e aristocraticamente à sombra das grandes
plantações de açúcar”[6].
“No Brasil a colonização particular, muito mais que a ação oficial, promoveu a
mistura de raças, a agricultura latifundiária e a escravidão”[7].
“A família, não o individuo, nem tampouco o Estado, nem nenhuma companhia de
comércio é, desde o século XVI, o grande fator colonizador no Brasil”[8].
“A casa-grande foi o centro de união da sociedade, completada pela senzala,
formando um sistema econômico, social, político, religioso e inclusive de
relações sexuais. A família colonial reuniu, sobre a base econômica da riqueza
agrícola e do trabalho escravo, uma variedade de funções sociais e econômicas”[9].
A casa-grande seria então o
símbolo da inexistência de conflito entre senhores e escravos. Pois ao
dividirem o mesmo espaço entre a casa-grande e a senzala, tinham suas
distâncias sociais reduzidas com as constantes relações que mantinham,
inclusive sexuais, o que resultou em uma miscigenação que corrigiu a distância
social entre negros e brancos no Brasil.
Entretanto, esta miscigenação
também trouxe a “desvantagem tremenda da sifilização. Começaram juntas, uma a
formar o brasileiro - talvez o tipo ideal do homem moderno para os trópicos,
europeu com sangue negro ou índio a avivar-lhe a energia; outra, a deformá-lo”.[10]
“A sifilização do Brasil resultou, ao que parece, dos primeiros encontros,
alguns fortuitos, de praia, de europeus com índias. Não só de portugueses como
de franceses e espanhóis. Mas, principalmente, de portugueses e franceses.
Degredados, cristãos-novos, traficantes normandos de madeira de tinta que aqui
ficavam, deixados pelos seus para irem se acamaradando com os indígenas, e que
acabavam muitas vezes tomando gosto pela vida desregrada no meio de mulher
fácil e à sombra de cajueiros e araçazeiros.”[11]
Em sua visão harmoniosa, Freyre
afirmava que o negro-escravo era bem alimentado pelos seus senhores para que esse
garantisse a produção agrícola e especialmente açucareira. Esta faceta
harmoniosa resultou numa influência genética do povo africano que contribuiu
para criar sub-raças brasileiras que se destacaram em beleza e vigor físico,
como exemplo: mulatas, baianas, crioulas, quadraronas, as oitavanas, cabras de
engenho, fuzileiros navais, capoeiras, capangas, atletas, estivadores,
jagunços, cangaceiros.”[12]
Assim, a formação da sociedade
brasileira se deu fundamentalmente pelas relações raciais, baseadas em uma
miscigenação sem preconceitos, pelo patriarcado e pela interpenetração das
culturas. Ou seja, esta dinâmica que se processava entre as relações da casa-grande
e da senzala agiam de forma a equilibrar os antagonismos da sociedade, e era
exatamente neste equilíbrio que se pautava a união e se formava a sociedade. De
fato, a perspectiva do triângulo racial de onde se tornavam possíveis as mais
variadas combinações, sobretudo sexuais, deixa escapar a concepção de que as
culturas simples de índios e negros se subjugariam à complexidade da cultura do
branco, o que demarca a hierarquia da estrutura social.
Casa-Grande
e Senzala é uma obra importantíssima para entendermos o que realmente
aconteceu no Brasil, do seu descobrimento ao processo de colonização, além da
ação do colonizador frente ao índio e, também, como aconteceu a escravidão em
nosso país. É uma obra marcante, que viria a sofrer severas críticas com o
passar dos anos de sua publicação, provocando
com que vários autores dialogassem sobre as relações raciais na formação
de nossa sociedade.
2. ORACY NOGUEIRA E AS 12 PROPOSIÇÕES PARA AS RELAÇÕES RACIAIS NO
BRASIL
No seu texto, comparando
Brasil e Estados Unidos, Oracy Nogueira relaciona a lógica e o funcionamento do
preconceito racial com critérios distintos de classificação social, exorta que
nos Estados Unidos, o preconceito está relacionado à descendência; no Brasil, o
preconceito está mais expresso na cor da pele. Ou seja, que dependem do ethos
de cada sistema cultural considerado.
Segundo sua análise,
“considera-se como preconceito racial uma disposição [ou atitude] desfavorável,
culturalmente condicionada, em relação aos membros de uma população, aos quais
se têm como estigmatizados, seja devido à aparência, seja devido a toda ou
parte da ascendência étnica que se lhes atribui ou reconhece. Quando o
preconceito de raça se exerce em relação à aparência, isto é, quando toma por
pretexto para as suas manifestações os traços físicos do indivíduo, a
fisionomia, os gestos, o sotaque, diz-se que é de marca; quando basta a
suposição de que o indivíduo descende de certo grupo étnico para que sofra as
consequências do preconceito, diz-se que é de origem.”[13]
Portanto, para tratar das
relações raciais na formação da sociedade brasileira, impossível é não fazer
referência, e repisar, o quanto resumido seja possível, o “quadro de
referência” de Oracy Nogueira. “Assim, entre o preconceito racial de marca e o
preconceito racial de origem, podem ser apontadas as seguintes diferenças”:[14]
1. Quanto ao modo de atuar: O
preconceito de marca determina uma preterição, o de origem, uma exclusão
incondicional dos membros do grupo atingido em relação a situações ou recursos
pelos quais venham a competir com os membros do grupo discriminador. No Brasil,
um clube recreativo, pode opor maior resistência à admissão de um indivíduo de
cor que à de um branco, porém, se o indivíduo de cor contrabalançar a
desvantagem da cor por uma superioridade inegável, em inteligência ou
instrução, poderá levar o clube a lhe dar acesso. Já nos Estados Unidos, ao
contrário, as restrições impostas ao grupo negro, em geral, se mantêm,
independentemente de condições pessoais como a instrução, a ocupação, ou mesmo
se o negro for PHD.
2. Quanto à definição de
membro do grupo discriminador e do grupo discriminado: No Brasil, o preconceito
é de marca, e o limiar entre o tipo que se atribui ao grupo discriminador e o
que se atribui ao grupo discriminado é indefinido. Assim, a concepção de branco
e não-branco varia, no Brasil, em função do grau de mestiçagem, de indivíduo
para indivíduo, de classe para classe, de região para região. Nos Estados
Unidos, ao contrário, o branqueamento, pela miscigenação, por mais completo que
seja, não implica incorporação do mestiço ao grupo branco, para todos os
efeitos sociais, o mestiço continuará sendo um "negro".
3. Quanto à carga afetiva:
onde o preconceito é de marca, ele tende a ser mais intelectivo e estético;
onde é de origem, tende a ser mais emocional e mais integral, no que toca à
atribuição de inferioridade ou de traços indesejáveis aos membros do grupo
discriminado. Assim, no Brasil, a intensidade do preconceito varia em proporção
direta aos traços negroides, e tal preconceito não é incompatível com os mais
fortes laços de amizade ou com manifestações incontestáveis de solidariedade e
simpatia. Nos Estados Unidos, o preconceito tende a ser antes emocional e
irracional que intelectivo e estético, assumindo o caráter de antagonismo ou
ódio intergrupal. Por isso mesmo, suas manifestações são mais conscientes,
tomando a forma de exclusão ou segregação intencional da população negra, em
relação aos mais diversos aspectos da vida social – segregação ocupacional,
residencial, escolar, em instituições religiosas, culturais, recreativas e de
assistência social e sanitária, em logradouros públicos, veículos e outros
recintos de acesso público. Em qualquer querela entre um indivíduo de cor e um
branco, o público tende a se dividir em dois grupos, cujas atitudes e
comportamento são largamente determinados pela filiação racial.
4. Quanto ao efeito sobre as
relações interpessoais: onde o preconceito é de marca, as relações pessoais, de
amizade e admiração cruzam facilmente as fronteiras de marca (ou cor); onde o
preconceito é de origem, as relações entre indivíduos do grupo discriminador e
do grupo discriminado são severamente restringidas por tabus e sanções de
caráter negativo. Assim, no Brasil, um indivíduo pode ter preconceito contra as
pessoas de cor, em geral, e, ao mesmo tempo, ser amigo particular, cliente ou
admirador de determinada pessoa de cor, sem que isso cause espécie ou implique
uma mudança de atitude ou de conceito das demais pessoas em relação a ele, pois
que não envolve uma redefinição de atitude ou de ponto de vista de sua parte.
Nos Estados Unidos, o branco que mantém relações de amizade com pessoas de cor
é pejorativamente chamado de negro-lover ou de "negro voluntário",
além de estar sujeito a sanções mais drásticas. A pessoa branca que se casa ou
se une com uma de cor, socialmente, passa a ser negra, tornando-se objeto de
discriminação e sendo relegada ao mundo social dos negros.
5. Quanto à ideologia: onde o
preconceito é de marca, a ideologia é, ao mesmo tempo, assimilacionista e
miscigenacionista, onde é de origem, ela é segregacionista e racista. No
Brasil, há uma expectativa geral de que o negro e o índio desapareçam, como
tipos raciais, pelo sucessivo cruzamento com o branco; e a noção geral é de que
o processo de branqueamento constituirá a melhor solução possível para a
heterogeneidade étnica do povo brasileiro. Nos Estados Unidos, a expectativa da
maioria, em relação às minorias sujeitas a discriminação, é de que se mantenham
endogâmicas e nucleadas, constituindo cada qual um mundo social à parte, de
modo a se imiscuírem o mínimo possível com aquela, cuja "pureza"
racial e característicos se considera necessário preservar.
6. Quanto à distinção entre
diferentes minorias: onde o preconceito é de marca, o dogma da cultura prevalece
sobre o da raça; onde o preconceito é de origem, dá-se o oposto.
Consequentemente, onde o preconceito é de marca, as minorias menos endogâmicas
e menos etnocêntricas são favorecidas, onde o preconceito é de origem, ao
contrário, há maior tolerância para com as minorias mais endogâmicas e mais
etnocêntricas. No Brasil, frequentemente, se ouve alegar, como agravante, em
relação aos japoneses, sírios e outros grupos de imigrantes, que os mesmos
"não se casam com brasileiros" e procuram preservar seu próprio
patrimônio cultural – língua, religião, costumes. Nos Estados Unidos, ao
contrário, quando se comparam duas ou mais minorias, frequentemente se aponta
como atenuante o "estar ela satisfeita consigo mesma" e, portanto, o
"não estarem os seus membros procurando impor-se aos outros grupos".
De um modo geral, nos Estados Unidos, há maior tolerância (que no Brasil) para
com imigrantes que falam, mesmo em público, sua própria língua, que conservam
sua própria música etc.
7. Quanto à etiqueta: onde o
preconceito é de marca, a etiqueta de relações inter-raciais põe ênfase no
controle do comportamento de indivíduos do grupo discriminador, de modo a
evitar a susceptibilização ou humilhação de indivíduos do grupo discriminado,
onde é de origem, a ênfase está no controle do comportamento de membros do
grupo discriminado, de modo a conter a agressividade dos elementos do grupo
discriminador. Assim, no Brasil, não é de bom tom "puxar o assunto da
cor", diante de uma pessoa preta ou parda. Evita-se a referência à cor, do
mesmo modo como se evitaria a referência a qualquer outro assunto capaz de
ferir a susceptibilidade do interlocutor. Nos Estados Unidos, a ênfase da
etiqueta está em expressar a assimetria das relações entre brancos e negros.
Assim, o branco exige que o negro o chame de mister e a ele se dirija
mencionando-lhe o sobrenome, porém, o negro tem de se conformar em ser chamado
pelo branco pelo primeiro nome, sem o uso daquela expressão. O comportamento de
brancos e negros, uns para com os outros, é estritamente regulamentado, de modo
a salientar a desfavorável posição dos últimos.
8. Quanto ao efeito sobre o
grupo discriminado: onde o preconceito é de marca, a consciência da
discriminação tende a ser intermitente; onde é de origem, tende a ser contínua,
obsedante. Em geral, o homem de cor, no Brasil, toma consciência aguda da
própria cor nos momentos de conflito, quando o adversário procura humilhá-lo,
lembrando-lhe a aparência racial, ou por ocasião do contato com pessoas
estranhas, podendo passar longos períodos sem se envolver em qualquer situação
humilhante, relacionada com a identificação racial. Nos Estados Unidos, a
consciência da própria identificação racial, por parte do negro, é contínua,
permanente, e envolve três tendências que se interpenetram: 1) uma preocupação
permanente de auto-afirmação; 2) uma constante atitude defensiva; e 3) uma
aguda e peculiar sensibilidade a toda a referência, explícita ou implícita, à
questão racial.
9. Quanto à reação do grupo
discriminado: onde o preconceito é de marca, a reação tende a ser individual,
procurando o indivíduo "compensar" suas marcas pela ostentação de
aptidões e característicos que impliquem aprovação social tanto pelos de sua
própria condição racial (cor) como pelos componentes do grupo dominante e por
indivíduos de marcas mais "leves" que as suas; onde o preconceito é
de origem, a reação tende a ser coletiva, pelo reforço da solidariedade grupal,
pela redefinição estética etc. Portanto, o que vemos no Brasil, é que a
experiência decorrente do "problema da cor" varia com a intensidade
das marcas e com a maior ou menor facilidade que tenha o indivíduo de
contrabalançá-las pela exibição de outras características ou condições –
beleza, elegância, talento, polidez etc. Nos Estados Unidos, a luta do negro,
como negro, seja qual for sua aparência, é, sobretudo, uma luta coletiva. As
próprias conquistas individuais são vistas como verdadeiras tomadas de novas
posições em nome do grupo todo. Em todo o contato com pessoas brancas, mesmo
nas organizações destinadas a combater as restrições raciais e a melhorar as
relações das diferentes minorias entre si e com a maioria, o indivíduo de cor
assume o papel de representante – vanguardeiro ou diplomata – de seu próprio
grupo.
10. Quanto ao efeito da
variação proporcional do contingente minoritário: onde o preconceito é de
marca, a tendência é se atenuar nos pontos em que há maior proporção de
indivíduos do grupo discriminado, onde é de origem, ao contrário, a tendência é
se apresentar sob forma agravada, nos pontos em que o grupo discriminado se
torna mais conspícuos pelo número. Com efeito, no Brasil, a impressão
generalizada é a de que os indivíduos de cor esbarram com manifestações mais
frequentes e ostensivas de preconceito em São Paulo, onde constituem uma cota
mais reduzida sobre o conjunto da população, do que, por exemplo, na Bahia ou
no Rio de Janeiro. Nos Estados Unidos,
ao contrário, o negro está muito mais sujeito a restrições nos pontos em que
representa uma cota mais numerosa da população.
11. Quanto à estrutura social:
onde o preconceito é de marca, a probabilidade de ascensão social está na razão
inversa da intensidade das marcas de que o indivíduo é portador, ficando o
preconceito de raça disfarçado sob o de classe, com o qual tende a coincidir, onde
o preconceito é de origem, o grupo discriminador e o discriminado permanecem
rigidamente separados um do outro, em status, como se fossem duas sociedades
paralelas, em simbiose, porém irredutíveis uma à outra. Nos Estados Unidos, é
tal a impermeabilidade que se observa entre os grupos, branco e negro, que o
emprego do termo "casta" com relação a tais grupos e, portanto, com
referência à organização social norte-americana, tem sido aceito por muitos
estudiosos destas relações.
12. Quanto ao tipo de movimento
político a que inspira: onde o preconceito é de marca, a luta do grupo
discriminado tende a se confundir com a luta de classes; onde é de origem, o
grupo discriminado atua como uma "minoria nacional" coesa e,
portanto, capaz e propensa à ação conjugada. Assim, no Brasil, os movimentos
sociais e políticos que têm apelado para a consciência de grupo da população de
cor, como fonte de motivação para o proselitismo, têm resultado num fracasso.
Nos Estados Unidos, a minoria negra não apenas atua como se fosse uma
nacionalidade em luta por um status, como tem sido equiparada a uma minoria
nacional por estudiosos e políticos.
Contextualizando o “quadro de
referência” de Oracy Nogueira, podemos entender que o preconceito que prevalece
no Brasil é aquele baseado no preconceito de cor, sendo chamado por ele de
preconceito de marca, que é exercido em relação à aparência física dos
indivíduos discriminados. E nos Estados Unidos, diferentemente, o preconceito
racial que prevalece é aquele baseado na origem, sendo chamado por ele de
preconceito de origem, quando o preconceito acontece por dedução de que o
discriminado tem uma ascendência de certo grupo étnico.
Enfim, concluindo, estes são
os dois tipos ideais desenvolvidos por Oracy Nogueira para apontar a existência
do preconceito racial presente no Brasil, que influenciou diretamente na
formação de nossa sociedade.
3. FLORESTAN FERNANDES, O DILEMA E O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL NAS
RELAÇÕES RACIAIS NO BRASIL
A obra, A Integração do negro na sociedade de classes, de Florestan
Fernandes, teve papel fundamental ao desmistificar o caráter harmonioso da
escravidão no Brasil, pregado por Gilberto Freyre. No seu texto, Florestan
busca comprovar que, após o fim do modo de produção escravista, os negros
continuaram marginalizados e sem condições claras de ascender socialmente na
sociedade de classes que, então, se constituía no país. Estabelece o conceito
do “mito da democracia racial” e posiciona o que seria o dilema racial
brasileiro.
Logo na introdução, o autor apresenta o ponto crucial
segundo sua visão, nada romântica, das consequências da desagregação do regime
escravocrata na formação de uma futura sociedade brasileira. Com a abolição, os
antigos “donos” dos escravos “foram eximidos da responsabilidade pela manutenção
e segurança dos libertos...” “O liberto se viu convertido, sumária e
abruptamente, em senhor de si mesmo...” “embora não dispusesse de meios
materiais e morais para realizar essa proeza, nos quadros de uma economia
competitiva.”[15]
(p. 29)
As relações raciais, na ótica
do autor, vão aparecer no item 2, do capítulo III, intitulado O dilema racial brasileiro. Mas, antes
de chegar ao dilema das raças no Brasil, neste capítulo III ele constrói, no item
1, a ideia do Mito da democracia racial,
depois de uma intensa análise que abordou desde dados demográficos, que apontam
uma imensa maioria branca (dados demográficos de São Paulo), até chegar à
abordagem sobre a heteronomia racial na sociedade de classes, explicitando o
quanto os negros e mestiços estavam sujeitos à vontade de uma coletividade
branca.
O “Mito da democracia racial”,
abordado no item 1., explica que “a perpetuação, em bloco, de padrões de
relações raciais elaborados sob a égide da escravidão e da dominação senhorial,
tão nociva para o homem de cor, produziu-se independentemente de qualquer
temor, por parte dos brancos”.[16]
Defende que, “por paradoxal que pareça, foi a omissão do branco – e não a ação
– que redundou na perpetuação do status quo ante.”[17]
Assim, segundo o autor, esta omissão que não provocou na sociedade brasileira,
como em outros países, sentimentos de intolerância e de ódios raciais foi que
manteve o homem branco ileso da ameaça do homem negro quanto a posição daquele
na estrutura de poder da sociedade. Era como se todo aquele padrão de relações
raciais da escravidão, ainda que ela não existisse mais, fosse legítima pela
sua própria história na sociedade brasileira. Assim, “no bojo desses padrões de
comportamentos, passaram para a nova era histórica e se revitalizaram normas de
velha etiqueta de relações raciais, distinções e prerrogativas sociais que
[naturalmente] proporcionavam direitos e garantias sociais das raças em
presença às posições que seus componentes ocupavam na estrutura de poder da
sociedade, representações que legitimavam, tanto racial, quanto material e
moralmente, tais distinções e prerrogativas”[18]
e, de alguma maneira, “acorrentava-se o homem de cor aos grilhões invisíveis de
seu passado, a uma condição sub-humana de existência e a uma disfarçada
servidão eterna.”[19]
Desta forma, Florestan
Fernandes vai definir o completo significado do dilema racial brasileiro, como
a impossibilidade de as relações de classe suplantarem as desigualdades raciais,
absorvendo-as. Nesse sentido, é importante observar o que diz o próprio autor:
“Delineia-se
claramente, assim, o dilema racial brasileiro”. Visto em termos de uma das
comunidades industriais em que o regime de classes sociais se desenvolveu de
modo mais intenso e homogêneo no Brasil, ele se caracteriza pela forma
fragmentária, unilateral e incompleta com que esse regime consegue abranger,
coordenar e regulamentar as relações raciais. Estas não são totalmente
absorvidas e neutralizadas, desaparecendo atrás das relações de classes. Mas
sobrepõe-se a elas, mesmo onde e quando as contrariam, como se o sistema de
ajustamentos e de controles sociais da sociedade de classes não contivesse
recursos para absorvê-las e regulá-las socialmente.
Caracterizando-se
o dilema racial brasileiro deste ângulo, ele aparece como um fenômeno
estrutural de natureza dinâmica. Ele se objetiva nos diferentes níveis das
relações raciais. Por isso, seria fácil reconhecê-lo nos lapsos das ações dos
indivíduos que acreditam “não ter preconceito de cor”; nas inconsistências das
atitudes, normas e padrões de comportamento inter-racial; nos contrastes entre
a estereotipação negativa, as normas ideais de comportamento e os
comportamentos efetivos nos ajustamentos raciais; nos conflitos entre os
padrões ideais da cultura, que fazem parte do sistema axiológico da civilização
brasileira; nas contradições entre os tipos ideais de personalidade básica
modelados através desta civilização, etc. Mas, ele se originou de uma causa
geral e comum: os requisitos estruturais e funcionais da sociedade de classes
só se aplicam fragmentária, unilateral e incompletamente às situações de
convivência social em que os socii se apresentam, se consideram e se tratam
como brancos e negros.
Em
outras palavras, as estruturas da sociedade de classes não conseguiram, até o
presente, eliminar, normalmente, as estruturas preexistentes na esfera das
relações raciais, fazendo com que a ordem social competitiva não alcance plena
vigência na motivação, na coordenação e no controle de tais relações.”[20]
Em outras palavras, Florestan
conclui de forma muito clara e objetiva de que não existe democracia racial no
Brasil e que isto não passa de uma ideologia que busca ocultar a face racista e
da dominação de classes que é praticada, naturalmente, pelas elites
brasileiras, com um fundo legitimado em sua própria gênese heteronômica.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como sabemos, Gilberto Freyre
desenvolve Casa-Grande e Senzala nos
idos dos anos 30, com uma perspectiva a partir da sua posição de homem branco e senhor. Ainda que ele tenha
enaltecido a presença do Negro, sua nostalgia pela cultura patriarcal
transparece sua posição social, pois este tempo, na verdade, foi muito difícil
para a maioria dos brasileiros, principalmente para o Negro. Ele defende que a
casa-grande foi o centro de coesão da sociedade. Que a casa-grande, completada
pela senzala, representava todo um sistema econômico, social, político,
religioso e sexual. E que a miscigenação existente corrigiu a distância social
entre negros e brancos no Brasil.
Já Oracy Nogueira, cerca de 20
anos depois, construiu um quadro de referência, segundo sua ótica, que pudesse
ser aplicado como um conjunto de hipóteses aos estudos das relações raciais no
Brasil. Criou doze proposições que contribuíram para estabelecer as
características diferenciadoras de dois tipos de preconceito e de dinâmica das
situações raciais na formação da sociedade brasileira, comparando-a com a
sociedade norte-americana. Para isso, dá o nome de "preconceito de
marca" à forma como tais características se apresentam no Brasil e de
"preconceito de origem" à maneira pela qual elas se constituem nos
Estados Unidos.
Cada autor em seu tempo e,
finalmente, Florestan Fernandes defendeu a tese, A integração do negro na sociedade de classes, em 1964, para
ingressar na cadeira de Sociologia I da USP, sua perspectiva sobre a desintegração
das relações escravistas que representavam a tradição, e a passagem para uma
modernidade edificada sobre o alicerce da sociedade de classes, indicava a
situação de marginalidade que enfrentava o negro dentro do sistema de relações
sociais. Neste sentido, em A integração
do negro na sociedade de classes, se contrapõe à ideia de democracia racial
defendida em Casa-Grande e Senzala.
Enquanto Freyre interpreta as
relações raciais no Brasil como harmoniosas e permissivas, Florestan atenta
para a inadequação do preconceito e da discriminação num país que se deseja
moderno, e Oracy tentou estabelecer uma metodologia de análise destas relações.
Vemos que o pensamento social
brasileiro nunca conseguiu chegar a um consenso com relação às questões raciais
no país, cada um em seu tempo. A linha que demarca alteridades entre pretos e
brancos foi tratada diferentemente por cada autor, explicitando seus
pensamentos, do mais otimista (Freyre), do pragmático (Oracy), ao pessimista
realista (Florestan).
BRAZILIAN SOCIAL THOUGHTS:
THE RACIAL RELATIONSHIP IN
BRAZIL IN THE COMPOSITION OF THE BRAZILIAN SOCIETY BASED ON THOUGHTS FROM
GILBERTO FREYRE, ORACY NOGUEIRA E FLORESTAN FERNANDES
This paper aims to expound the thoughts of these renowned authors and
discussing his views on relations perpetrated by colonial society as regards
relationship, especially among whites, blacks, and their descendants, covering
the main aspects of the works from each thinker and his influences on formation
of the Brazilian society.
KEYWORDS: race relations, slavery, sociability, prejudice, classes.
NOTAS BIBLIOGRÁFICAS
[1] Francês, Roger Bastide (1898-1974) chegou ao Brasil em 1938 para ocupar a
cátedra de Sociologia I, no Departamento de Ciências Sociais da Universidade de
São Paulo deixada vaga pelo professor Claude Lévi-Strauss; Bastide aqui esteve
até 1984, quando partiu definitivamente para a França onde foi lecionar
primeiramente na École Pratique des Hautes Etudes, 6e Section, hoje École des
Hautes Études en Sciences Socielies; nomeado em seguida para a Universidade de
Paris, cátedra de Sociologia, também foi durante mais de dez anos professor no
Institut des Hautes Études de l 'Amérique Latine. Florestan Fernandes assumiu a vaga com a saída de Bastide.
[2] FREYRE, Gilberto. Casa-Grande e Senzala. 51 ed. rev. São Paulo: Global, 2006, p. 65.
[3] Ibden, p. 66.
[4] Ibden, p. 69.
[5] Ibden, p. 74-75.
[6] Ibden, p. 79.
[7] Ibden, p. 80.
[8] Ibden, p. 81.
[9] Ibden, p. 85.
[10] Ibden, p. 110.
[11] Ibden, p. 111.
[12] Ibden, p. 55.
[13] NOGUEIRA, Oracy. Preconceito racial de marca e preconceito racial de origem:
sugestão de um quadro de referência para a interpretação do material sobre
relações raciais no Brasil, p.
292. In. Tempo Social, revista de
sociologia da USP, v. 19, n. 1.
[14] Ibden, p. 293-304.
[15] FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classe. ed. 1. vol. 1. Globo, 2008,
p. 29
[16] Ibden, p. 304.
[17] Ibden, p. 305.
[18] Iden, p. 305.
[19] Ibden, p. 309.
[20] Ibden, p. 571-572.