segunda-feira, 1 de outubro de 2012


A PROLETARIZAÇÃO DO TRABALHO MÉDICO




RESUMO


  

O estudo deste tema objetivará esclarecer os contornos do mercado de trabalho do médico. Empreenderemos uma análise sobre as mudanças no contexto do trabalho deste profissional e as tendências deste mercado, abordando a visão sobre a transição que vem ocorrendo, deixando este trabalhador de ser o típico profissional liberal para uma condição de assalariado, evidenciando o caminho crescente da proletarização do trabalho do médico nos conceitos marxistas, quanto ao capital e economia.

  

PALAVRAS-CHAVE: Trabalho. Saúde. Proletarização.



INTRODUÇÃO


 

 

A profissão do médico sempre teve um papel importante ao longo da história de todas as sociedades. As exigências de uma formação longa que envolve vários anos de estudos, de prática, combinadas ao denso conhecimento teórico e com um aprendizado empírico que se renova periodicamente, tiveram como natural contrapartida o reconhecimento pela sociedade de sua essencialidade para a humanidade. As doenças e o medo da morte contribuíram para consolidar a sua importância e poder, gerando na sociedade crenças onde, para uns era um “santo”, um entregador de “dádivas”, para outros, especialmente os mais humildes, um verdadeiro “deus capaz de trazer o doente de um estado de quase morte para vida”.

Estudos apontam que, a partir de meados do século XX, começa o declínio da profissão de médico como carreira liberal. O século anterior, período de uma medicina ainda em fase de transição para a especialização, marca o predomínio de um atendimento realizado principalmente no consultório particular, não acessível à grande maioria da população. Era o conhecido “médico da família”.

A prática e o próprio conceito de saúde pública são fenômenos recentes, mesmo nos países desenvolvidos. Aliás, a definição mais corrente e aceita de saúde pública é de Edward Amory, médico americano, que em 1920 definiu saúde pública como “o controle das infecções, o saneamento do meio, a educação dos indivíduos nos princípios da higiene pessoal, a organização dos serviços médicos e de enfermagem para o diagnóstico precoce e o pronto tratamento das doenças e a criação de uma estrutura social que assegure a cada indivíduo na sociedade um padrão de vida adequado à manutenção da saúde” [1].

A saúde pública praticamente inexistiu no Brasil nos tempos de colônia. Em 1789, registros históricos apontam que o Rio de Janeiro tinha apenas quatro médicos e as duas primeiras escolas de medicina do país foram criadas em 1808 com a vinda da família real portuguesa, sendo esta única ação governamental em prol da saúde da população até a República.

Mais adiante, com o advento da Lei Orgânica da Previdência Social, de 1960, e a criação do Instituto Nacional de Previdência Social em 1967, que unificou os Institutos de Aposentadoria e Pensões (os IAPs) marcam o início da assistência massiva à saúde dos cidadãos em geral, via aporte de recursos públicos, ainda que tímido e insuficiente para as reais necessidades da população.

Naquela época, ainda existia a mazela da discriminação entre o campo e a cidade e algumas outras categorias. Apenas os trabalhadores integrantes da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) foram beneficiados, ficando de fora os trabalhadores rurais, os servidores públicos e os empregados domésticos. Principalmente os trabalhadores rurais, por muitos anos estiveram excluídos de qualquer auxílio sistemático à saúde. Somente à partir de 1963 passaram a ter direito à aposentadoria e a uma tímida e insuficiente assistência via o FUNRURAL (Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural).

A criação do Sistema Único de Saúde (SUS), com a Constituição de 1988, estendeu os benefícios assegurados apenas aos participantes do Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS) a toda população brasileira. Entretanto, a verdade é que isso aconteceu apenas formalmente. O direito aos serviços e a assistência à saúde passaram, pelo menos constitucionalmente, a ser um direito de todo cidadão. Estas garantias passaram, então, a dar nova conotação ao comportamento da sociedade que, não se conformando hoje com a situação que se encontram os serviços de saúde, começaram a buscar uma maneira de exigir que a saúde lhe seja entregue, empurrando o médico, de “santo” ou “deus”, ao vilão da história.

O lento processo de desenvolvimento da saúde pública no Brasil começou então a se deparar com as radicais mudanças ocorridas na ciência médica nas últimas décadas. A medicina tornou-se dependente de outras áreas de conhecimento. A notável evolução da genética, da biologia, da indústria farmacêutica, da engenharia e da informática foi incorporando parcelas crescentes de capital e de tecnologia às práticas médicas. A rápida especialização e as crescentes necessidades de aportes de capital e os investimentos de grandes operadores capitalistas da área da saúde foram deslocando o conhecimento, a experiência e o trabalho médico do consultório para a Instituição de Saúde.

Embora imprescindível e essencial, o médico foi se adaptando às mudanças do novo modo de produção do serviço médico, cada vez mais dependente de novas tecnologias e de equipamentos complexos e de instituições de grande porte. O capital assume então crescente importância no custo do serviço, empurrando a atividade médica do seu caráter individual de cunho liberal para o trabalho especializado, coletivo e assalariado. O médico profissional liberal, símbolo de uma pequena burguesia outrora bem sucedida, entra em declínio e, em apenas poucas décadas, perdeu espaço para as grandes corporações de medicina e saúde.

Assim, as mudanças no mercado de trabalho, provocadas pela reestruturação produtiva a partir dos anos 80, vêm afetando diversas categorias profissionais, incluindo os de saúde. Diante disso, o que vemos é que os médicos que tinham alcançado um status elevado entre os profissionais de outras categorias, tem se submetido na atualidade a processos de precarização nas relações de trabalho. E, submetendo-se ao assalariamento, isso vem afetando sua histórica autonomia empregatícia. O objetivo deste trabalho, portanto, é apontar e explorar com dados empíricos este processo de assalariamento da profissão do médico, para evidenciar no que tem afetado esta transformação e a sua relação com a sociedade capitalista em que hoje vivemos, sob a ótica marxista.

 

 


1. AS MUDANÇAS NO MERCADO DE TRABALHO


 

 

1.1. Perfil e Tendências do Profissional Médico


 

 

O mundo do trabalho nas ultimas décadas passa por mudanças em todos os âmbitos, as quais provocaram inúmeros reflexos em outros setores da sociedade, especialmente no exercício de várias profissões. O desemprego estrutural, provocado muitas vezes pelo surgimento de novas tecnologias, repercute na diminuição da oferta de trabalho e na reconfiguração de postos de trabalho.

Nenhuma categoria profissional ficou imune às transformações resultadas da reestruturação produtiva e o perfil do trabalhador, em geral, é alvo de alterações. Os profissionais da área de saúde também sofrem as consequências destas transformações produtivas, incluindo os médicos, que estão se submetendo a processos de crescente assalariamento e relações de mercado autônomas “atípicas”, em razão das formas de tomada de serviços médicos que, em muitos casos, nem configuram um trabalho liberal mas, tão pouco, uma relação de emprego formal. Muito se sujeitam a uma forma de assalariamento fictício, onde são convidados a fazer parte de uma sociedade ou cooperativa, mas, na verdade, trabalham por um salário. Tal relação de emprego fictícia, a princípio, só é boa para o empresário da saúde, que diminui a carga de impostos incidentes sobre o negócio.

Tais formas de tomada de serviços médicos têm algumas especificidades, se comparado com os de outras categorias. A autorregulação inerente a estes profissionais produzem várias categorias de assalariamento, criadas para se adaptarem à natureza da profissão, que a torna particular pelo fato de em alguns casos manter autonomia no exercício laboral, mediante uma relação salarial com inúmeras configurações, como a acima mencionada, graças a flexibilidade deste profissional, legalmente considerado profissional liberal. Entretanto, estas mudanças nas relações de trabalho de um profissional considerado de maior status na área de saúde afetarão, consequentemente, todo o sistema de saúde e os tomadores destes serviços, neste caso, a população em geral.

Uma pesquisa coordenada em 1996 pela socióloga Maria Helena Machado apresenta um perfil e tendências da profissão do médico no Brasil, e discutiu aspectos inéditos e importantes sobre as transformações desta categoria. Esta pesquisa retratou o profissional de Medicina por intermédio de uma amostra significativa. Com base em informação captada nessa pesquisa, foram retiradas algumas configurações importantes da classe médica que servem para indicar tendências que vem se moldando[2]:

 

“Em números, o mercado de trabalho médico do Brasil tem a seguinte estrutura: 69,7% dos médicos têm atividade no setor público (seja na esfera federal, estadual ou municipal), apresentando regionalmente a seguinte distribuição: norte (82,4%); nordeste (81,1%); sudeste (66,8%); sul (63,9%) e centro-oeste (74,7%).

Por outro lado, 59,3% trabalham no setor privado, sendo 51,3% na região norte, 55,8% no nordeste, 59,9% no sudeste, 61,7% no sul e 59,9% no centro-oeste. Além disso, no Brasil, 74,7% exercem atividade "liberal" em seus consultórios privados, principalmente do tipo "próprio individual" (sendo 72,3% no norte, 69,5% nordeste, 73,9% no sudeste, 84,2% no sul e 72,9% no centro-oeste). Tais cifras demonstram um mercado de serviços equilibrado entre os três setores de atuação médica. Os dados evidenciam também o multiemprego, para a maioria. Além disso, 13,5% dos médicos brasileiros declararam ter outra fonte de renda além da Medicina. Já nas regiões, a questão de "outra fonte de renda" tem o seguinte comportamento: região norte (14,5%), nordeste (14,2%), sudeste (12,4%), sul (15,8%) e centro-oeste (16,3%).

Salienta-se que no Brasil, 75,6% dos médicos têm até três atividades e 24,4% apresentam-se com quatro ou mais atividades profissionais médicas, comportamento este observado em todas as regiões. O consultório destaca-se como a modalidade de trabalho que mais se vincula à tradicional condição de "profissional liberal". No entanto, se os percentuais são elevados (entre 70 e 85% para todas as regiões do país), isto não significa, necessariamente, o exercício pleno da atividade liberal, visto que entre 75 e 90% dos médicos das regiões brasileiras declaram depender diretamente dos convênios com empresas de saúde, medicina de grupo, cooperativas médicas, entre outros, para a manutenção de seus consultórios em funcionamento.  Fato curioso é a questão do gênero na determinação desta modalidade de trabalho médico, já que apenas 29,4% dos que têm atividade em consultório são mulheres. Por outro lado, dentre aqueles que exercem atividade em consultório, pouco menos da metade (45,2%) tem menos de 40 anos.

Quanto ao rendimento mensal proveniente do trabalho médico (Tabela 3.2), a média nacional é de US$1.280, sendo US$ 1.163 (nas capitais) e US$ 1.600 (nos interiores). A renda mensal desejada pelos médicos foi de US$4.608 dólares, sendo US$4.240 (nas capitais) e US$5.575 (nos interiores). O piso salarial sugerido para uma jornada de 20 horas semanais (US$1.381), sendo maior nas capitais (US$1.412) do que nos interiores (US$ 1.320). Da mesma forma, a questão salarial e de rendimentos dos médicos varia de região para região.

Os valores modais de renda mensal declarada foram de US$ 1.429,8 para a região norte; US$1.250,3 para o nordeste; US$ 1.252,1 para o sudeste; US$ 1.400,6 para o sul e US$ 1.371,1 para o centro-oeste.

Por outro lado, a renda mensal desejada apresentou as seguintes modas: norte (US$ 5.409,7), nordeste (US$ 4.362,4), sudeste (US$ 4.350,7), sul (US$ 4.745,8) e centro-oeste (US$ 5.988,4) e o piso salarial proposto, oscilou de US$ 1.464,1 (norte) até US$ 1.216,2 (nordeste), US$ 1.415,2 (sudeste); US$ 1.302,7 (sul) e US$ 1.464,8 (centro-oeste).

 

Resumindo, o estudo apresenta tendências que vem se confirmando, tais como, que o médico atualmente transita em empregos públicos mais que privados; que, cada vez mais, assume multiempregos em busca de maior renda, pois é clara, segundo a pesquisa, a discrepância entre o salário almejado e o salário real oferecido pelo mercado; tende a exercer a profissão cada vez mais jovem e, outro dado a observar, é que a crescente participação do contingente feminino é inevitável.

Isto posto, seria plausível estabelecermos uma relação entre a insatisfação do médico com a diminuição da renda em seus consultórios e o vínculo empregatício assumido por estes dentro dos hospitais ou sociedades médicas corporativas e, finalmente, como essa tendência de caráter sócio econômica afeta a vida daqueles que tomam o serviço médico, ou seja, a população em geral.

 

 

1.2. Médico: Profissional Liberal ou com Vínculo Empregatício


 

 

Lamentavelmente, não há registro de atualização da pesquisa acima. Entretanto, ela é suficiente para suportar atualmente a tese de que pode estar havendo uma crescente proletarização[3] do médico, ou seja, uma dependência cada vez maior por parte desses profissionais de um “emprego” que lhes garanta um salário determinado, em detrimento ao consultório, que o caracteriza como profissional liberal.

Ainda, uma das discussões que está em pauta é sobre que vínculos fazem do médico um assalariado, um autônomo ou um profissional liberal. Maria Helena Machado afirma, por exemplo, que “no mundo do trabalho médico é praticamente impossível propor análises de tipos puros (assalariado ou liberal)”[4].

Na verdade, se em um passado recente, o médico era totalmente autônomo na sua conduta profissional, no saber e nos procedimentos com o paciente, nos dias atuais, vários são os fatores que põem em xeque sua autonomia e independência. Empurrado pela força econômica de diversos atores da área da saúde, especialmente os planos de saúde, cooperativas e grandes grupos hospitalares, o médico tem deixado de ser um profissional que exerce o controle sobre sua clientela e autorregula o seu trabalho, tornando-se, cada vez mais, dependente de uma estrutura de serviços e equipamentos de grande porte.

É inegável que o médico parece continuar sendo autônomo no modo de exercitar o seu trabalho através do conhecimento que possui. Mas, a cada dia, tende a ser assalariado, tanto do setor público, quanto do setor privado, por ter que obedecer as regras e normas inerentes a cada entidade institucional a que se vincula. Importante é, também, observar que o setor privado possui parcerias com o setor publico, o que, muitas vezes, dificulta caracterizar determinadas situações empregatícias, bem como definir a proveniência da renda deste profissional de saúde.

Uma questão muito peculiar neste tema é a dos planos de saúde e suas formas de remunerar, que são variadas. Há uma queixa muito grande dos médicos, e alguns não aceitam filiação a quaisquer planos, alegando que não compactuam com o desrespeito destas instituições, que não valorizam o trabalho do médico.

Entretanto, de fato, os planos de saúde se tornaram agenciadores e grandes concorrentes dos consultórios, já que arrebanham hoje uma parcela considerável daqueles que poderiam pagar por uma consulta privada. Além disso, estes planos estão construindo seus próprios hospitais, clínicas e laboratórios, para forçar os clientes a procurar suas instalações, canalizando o cidadão que toma o serviço médico, da medicina privada para a medicina institucional.

Assim, é importante ressaltar que o médico que não quer ser “empregado” ou estar vinculado a um plano de saúde, enfrenta forte concorrência para sua sustentabilidade apenas com o trabalho em seu consultório.


2. O CONTEXTO DO EXERCÍCIO PROFISSIONAL


 

 

A medicina que se caracterizou ao longo da história como uma profissão com elevado status na hierarquia social, com alto prestígio do profissional liberal, que teve sempre grande destaque nos diversos campos que compõem o tecido social, vem enfrentando nos últimos anos uma realidade que vem mudando este contexto, observando-se atualmente uma crescente perda de autonomia, uma tendência ao assalariamento e também ampliação da medicina de grupo e das cooperativas de assistência.

Grande parte destas mudanças são proporcionadas por um investimento massivo de empresas privadas, principalmente das corporações multinacionais, planos de saúde e empresários no campo da saúde. Acrescente-se a isso a expansão dos serviços estatais e a influência das políticas públicas no mercado de trabalho médico. Também as transformações atuais na informática e as descobertas técnico-científicas impulsionam ao mesmo tempo ao aparecimento de inúmeras especialidades e subespecialidades, o que gera importantes reestruturações na formação e prática profissional.

A formação e a prática profissional é outra das interferências nas mudanças que o mercado de trabalho vem sofrendo. A medicina passou a incorporar, graças a novas tecnologias de diagnósticos, os especialistas, e, assim, criou projetos pedagógicos para estender a formação médica através da residência médica, para a respectiva especialização. Este sistema é altamente interessante para os hospitais, que passam a ter um corpo clínico permanente e extremamente dedicado e de baixo custo, ávido por praticar e aprender para tentar se inserir no mercado de trabalho.

Entretanto, graças a estas especializações, aos avanços tecnológicos dos dias atuais e das técnicas de diagnósticos para o auxilio dos procedimentos médicos, há também uma crescente responsabilidade do profissional sobre os resultados desejados, positivos, claro, onde a cobrança pelo êxito é muito grande.

Isso tem afastado o paciente e o médico, e, a verdade é que, um atendimento desatencioso e impessoal, baseado em muitos exames, frustra mais as expectativas do tomador do serviço do que os próprios resultados indesejáveis do tratamento. Ademais, acrescente-se a isso, o fato de que, atualmente, os pacientes estão mais informados e menos submissos à autonomia que o médico gozava há décadas atrás, em relação aos diagnósticos feitos por ele. Isso tem gerado, tantas vezes, uma repercussão negativa de seu trabalho como médico, refletida na vida profissional, pessoal, e familiar.

Neste contexto o médico carrega o drama de que é um dos profissionais que dificilmente pode errar pois, pelo fato de trabalhar com a vida humana, um erro pode ser fatal para o paciente e para sua carreira. Na realidade, vale ressaltar, que a grande maioria que clinica vive hoje sob pressão, sobretudo do ponto de vista jurídico. Hoje há advogados especializando-se em causas contra médicos.

Apenas para ilustrar, pesquisa realizada nos Tribunais de Justiça dos Estados do Rio de Janeiro e São Paulo, apresentada no IV Congresso EndoRio, em Conferência sobre o tema Responsabilidade Civil e o Erro Médico, em 11 e 12 de setembro de 2009[5], demonstram que até meados dos anos 2000, praticamente não existiam as chamadas ações indenizatórias por erro médico e, após uma mobilização da sociedade, que criou as associações de pacientes vitimas de erro médico[6], que se sentiam lesados pelo serviço prestado, estas demandas jurídicas cresceram exponencialmente.

Nesta pesquisa apenas foi possível mapear os dados de processos por má prática médica, que tiveram recursos a 2ª instância destes tribunais, já que ainda não existem estatísticas para a 1ª instância. Supõe-se que o número de processos que não chegam a ter recursos, ou seja, são resolvidos logo no primeiro julgamento, sejam pelo menos 10 vezes mais do que os que chegam ao segundo julgamento. O Estudo pesquisado apontou um crescimento percentual para São Paulo de 204% de aumento entre 2003 e 2008. E para o Rio de Janeiro o aumento foi de mais de 800% entre os anos de 2000 a 2008.

Entre outras das características mais salientes do processo de transformação do mercado de trabalho médico, está a urbanização, o rejuvenescimento e a maior participação das mulheres nesta categoria de profissionais.

Quanto a concentração desta força de trabalho, cada vez mais os médicos se concentram em alguns estados do Brasil e nas grandes cidades, enquanto inúmeros municípios do país não têm sequer um desses profissionais. “Aproximadamente 80% do total de médicos existentes exercem suas atividades em somente sete estados e, principalmente, nas grandes cidades”. Maria Helena Machado aponta, também, nas suas análises, conforme visto no item anterior, o aumento do contingente de médicos e médicas jovens no mercado de trabalho, pois atualmente 70% dos profissionais têm menos de 45 anos de idade. Eles ingressam no mercado de trabalho, na sua maioria, entre 26 e 28 anos e somente 10% têm mais de 60 anos, o que caracteriza uma pirâmide etária predominantemente jovem na profissão. A tendência à feminilização da carreira médica no Brasil (aproximadamente 50% dos alunos dos cursos de residência médica são mulheres) é um fenômeno que se observa também em diversos países.”[7]

O mercado de trabalho médico, na sociedade capitalista brasileira, tem sido regulado crescentemente por diversos agentes intermediários entre o profissional e os tomadores dos serviços de saúde, evidenciando um crescente processo de assalariamento, ou proletarização dos profissionais. O próprio Estado constitui-se cada vez mais numa das principais instâncias empregadoras dos profissionais, que buscam uma aposentadoria de acordo as normas empregadas para os servidores públicos, que são diferenciadas do resto da população no que tange ao valor do salário teto de aposentadoria.

No Brasil a política de universalização e descentralização do sistema de saúde, instituído pela Constituição Federal de 1988, através do Sistema Único de Saúde (SUS), gera uma maior expansão dos empregos em todos os municípios. Os hospitais e postos de saúde são hoje um dos principais locais de inserção da força de trabalho na área da saúde em nível nacional.

Segundo dados do senso de 2002 do IBGE entre 1992 e 2002, houve, no país, um incremento da ordem de 46% no número de postos de trabalho médicos nos estabelecimentos públicos, chegando a 115% na Região Norte.

 





Fonte: Adaptado de - Pesquisa Assistência Médico-Sanitária

IBGE, 1992 e 2002[8]

 

O governo até tenta modificar esta situação de concentração de profissionais, incentivando a interiorização através de programas que oferecem salários de até R$ 8.000,00[9], mas, parece que tais programas de bolsas não tem sido suficientes para resolver o desequilíbrio na oferta de profissionais pelo país.

Alie-se a isso o investimento massivo das corporações privadas e dos planos de saúde que arrebanham os profissionais para dentro de suas instituições, especialmente aqueles recém-formados que não dispõem de recursos para empreender uma carreira liberal em consultório e não querem deixar seus municípios de origem.

No que concerne a atividade em consultório particular, ainda há o fato de que, devido aos problemas financeiros de grande parte da população, que encontra dificuldades para pagar consultas particulares e os próprios planos de saúde, deixaram de procurar os consultórios particulares e passaram a procurar atendimento nos hospitais públicos, desequilibrando a relação demanda-oferta destes serviços e, por consequência, inúmeros profissionais enfrentam problemas para manter os custos operacionais dos consultórios, o que os tem levado a buscar outra alternativa, a de dividir as despesas com colegas ou até mesmo a fechar as portas.

Outro fator que gera um impacto importante no mercado de trabalho médico é a crescente incorporação de novas tecnologias no processo de produção dos serviços. O elevado custo dos equipamentos mais modernos fez com que a prática individual fosse substituída cada vez mais pelo trabalho grupal. Surge a medicina de grupo, atualmente oferecendo possibilidades de inserção a um grande contingente de médicos.

A maioria dos profissionais, especialmente os recém-chegados ao mercado de trabalho, está assinando convênios com empresas privadas ou cooperativas, ou assumindo uma condição de sócio, fictícia, de determinado grupo corporativo de prestação de serviços de saúde, pois estas apresentam-se como as possibilidades de inserção no mercado de trabalho e de remuneração razoável, a curto prazo, mesmo que o retorno financeiro seja menor que nas formas tradicionais do exercício profissional liberal.

Ao comentar sobre a situação dos médicos no mercado de trabalho, Machado focaliza a questão da perda gradual de autonomia do profissional. De acordo com a autora, verifica-se, na atualidade, uma “progressiva perda de propriedade e ou controle, pelo produtor direto, dos meios de produção”[10] e a proliferação de novas formas de distribuição e concentração desses meios, com maior expansão do trabalho assalariado.

O assalariamento se expande cada vez mais, transformando a imagem do profissional liberal autônomo. Este, que costumava garantir a sua independência através do domínio da informação, da posse de recursos materiais e técnicos próprios e da captação de uma clientela cativa, tem observado uma mudança rápida nos últimos anos e as novas gerações de médicos vem realizando sua formação inseridos nesse novo contexto.

Assim, o que vemos é que o assalariamento representa uma reorientação social do trabalho médico, constatando-se a substituição de uma clientela seletiva particular, pela massa da população urbana. É importante compreender também que está em andamento um processo de eliminação do “modelo artesanal de atividade médica”, forma que caracteriza a medicina liberal, “através da crescente separação entre o produtor direto e uma significativa parcela de seus meios de produção, com a correspondente substituição da troca direta entre produtor e consumidor pela venda da força de trabalho no âmbito de um sistema de produção estatal ou privado de serviços de saúde”[11].

Analisando os diversos interesses e a correlação das forças econômicas, institucionais e empresariais, é possível encontrar os fatores explicativos para as novas configurações da profissão médica nos dias de hoje. Vemos que os profissionais mais antigos ainda resistem, mantendo seus consultórios, mas inúmeros deles tem algum vínculo institucional, seja público ou privado, para melhorar sua renda e, quanto aos profissionais mais jovens, estes encontram crescentes limitações para aceder aos instrumentos de trabalho e à clientela, reduzindo seu poder de barganha diante das empresas que estipulam o preço do seu trabalho, não deixando alternativa se não o emprego.

Outro fator importante é a ampliação cada vez maior do número de alunos formados nas faculdades de medicina, onde, segundo o Ministério da Educação a cada ano no Brasil quase 13 mil alunos se formam em medicina. O Conselho Federal de Medicina indica que hoje existem mais de 371.074 médicos no país e que há uma concentração excessiva nas capitais e no litoral. Na Região Sul e Sudeste estão concentrados cerca de 70% dos médicos do país.

Todos estes fatores demonstram claramente que há, cada vez mais, profissionais disponíveis, e que há uma super oferta de profissionais nas capitais, o que acirra a competição pelas vagas disponíveis.

Uma situação de trabalho igualmente importante dentro do processo de transformação do mercado de trabalho médico é a questão da remuneração. A carreira de médico continua sendo muito procurada por jovens de todo país, pois o exercício da profissão, em comparação às outras profissões liberais, ainda é a que melhor remunera. Pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas confirma que a profissão de maior remuneração entre as profissões de nível superior é a medicina, que apresenta uma renda salarial média para os portadores do título de doutor em torno de R$ 8.966,07 e R$ 6.705,00 para graduados, enquanto as demais profissões oscilam em torno de R$ 5.000,00 para doutores e R$ 3.500,00 para graduados[12].

A profissão médica é também a que apresenta maior jornada, em torno de 52 horas semanais, enquanto as jornadas de trabalho das demais profissões giram em torno de 42 horas semanais. A explicação para isso, tanto para os maiores salários, quanto o excessivo número de horas trabalhadas, é que o médico tem maior facilidade em manter vários vínculos empregatícios, além da manutenção de consultório particular, o que permite uma maior remuneração, mas também lhe impõe um ritmo extenuante de vida.

Nessa situação de trabalho, ocasionada pelas mudanças de mercado ora mencionadas ao longo do escrito, o médico passa a ser, também, um trabalhador coletivo, e se encaixa no contexto do pensamento de Marx. Ele “reflete sobre o significado - para o indivíduo e a sociedade - da apropriação por não-produtores (pessoas, empresas ou o Estado)”, neste caso pelas grandes instituições, hospitais e corporações, que investem na mercadoria saúde, “de uma parcela do que é produzido socialmente, e desenvolve sua concepção de classe, exploração, opressão e alienação.”[13]

O fundamento da alienação, para Marx, encontra-se na atividade humana prática: o trabalho. Marx faz referência principalmente às manifestações da alienação na sociedade capitalista. Segundo ele, o fato econômico é “o estranhamento entre o trabalhador e sua produção” e seu resultado é o “trabalho alienado, cindido” que se torna independente do produtor, hostil a ele, estranho, poderoso e que, ademais, pertence a outro homem que o subjuga, o que caracteriza uma relação social.

A teoria Marxista, que aqui a refletimos sobre a atividade médica e o impacto sócio econômico que provoca, se encaixa perfeitamente a situação da proletarização do trabalho do médico, Marx “sublinha três aspectos dessa alienação: 1) o trabalhador relaciona-se com o produto do seu trabalho como algo alheio a ele, que o domina e lhe é adverso, e relaciona-se da mesma forma com os objetos naturais do mundo externo; o trabalhador é alienado em relação às coisas; 2) a atividade do trabalhador tampouco está sob seu domínio, ele a percebe como estranho a si próprio, assim como sua vida pessoal e sua energia física e espiritual, sentidas como atividades que não lhe pertencem; o trabalhador é alienado em relação a si mesmo; 3) a vida genérica ou produtiva do ser humano torna-se apenas meio de vida para o trabalhador, ou seja, seu trabalho - que é sua atividade vital consciente e que o distingue dos animais - deixa de ser livre e passa a ser unicamente meio para que sobreviva. Portanto, “do mesmo modo como o operário se vê rebaixado no espiritual e no corporal à condição de máquina, fica reduzido de homem a uma atividade abstrata e a um estômago”. Por outro lado, o trabalho produtivo acaba por tornar-se uma obrigação para o proletário, o qual, não sendo possuidor dos meios de produção, é compelido a vender sua atividade vital, que não é para ele mais do que um meio para poder existir.”[14]

Vimos de forma clara os efeitos dessas transformações no contexto do trabalho médico, cujo produto do trabalho pertence a outro (instituições médicas e hospitais), numa relação da medicina com as corporações médicas, e a transformação da força de trabalho em mercadoria, onde a consequência é que o produto do trabalho do médico, a cura ou a saúde, vem se transformando em mercadoria, impulsionando a economia da saúde.

 


CONCLUSÃO


 

 

Podemos perceber nesta análise das transformações do mercado de trabalho do médico, que o excesso de profissionais disponíveis e sua alta concentração nas grandes cidades acirram a competição pelo mercado de trabalho, empurrando o médico a aceitar cada vez menores salários e a submeter-se a esta situação para conseguir a tão almejada inserção no mercado de trabalho.

Que o capital investido na economia da saúde, trazido pelos empresários do setor, tem deixado o profissional sem alternativa, que, oprimido pelo modelo econômico, vai deixando a profissão liberal, inserindo-se naquilo que podemos chamar de operário da saúde.

Nos últimos anos, para tentar atingir um determinado padrão salarial almejado, o profissional vem aumentando a sua carga de trabalho entre inúmeros afazeres que compreendem cada vez mais uma menor clientela particular no consultório e mais dois, três ou até quatro empregos de em média 20 horas semanais. E, como é humanamente impossível atender a tantos encargos, o resultado é a ausência e falta de profissionais nos postos de saúde, nas emergências e nos hospitais, uma menor dedicação a estudos e atualizações e um consequente aumento no número de erros, gerando nos conselhos regionais de saúde, e nas instâncias judiciais, frequentes reclamações sobre o trabalho do médico, piorando a avaliação do serviço prestado.

Em fim, parece evidente que os médicos vivem hoje um difícil momento de transição da profissão, com um grande número de profissionais tentando resistir em deixar o status de profissional liberal, daquele bem sucedido “medalhão”[15], que do seu consultório tudo comandava para a entrega do produto saúde, para o trabalho assalariado, passando a condição de proletário e de dependência de um patrão capitalista, que lhe explora em troca de um salário fixo e outros benefícios legais, ou até mesmo de empregos públicos, que lhe garantam uma aposentadoria.

 

 

SOCIOLOGY:

PROLETARIZATION OF MEDICAL JOB

 

 

ABSTRACT


 

 

The theme of this study aim to clarify the contours of the physician labor market. W’ll undertake an analysis of the changes in the context of the work for medical professional and trends in this market, addressing the vision of the transition that has been taken place, physician are leaving this work typically performed in private practice  becoming a employed professional, showing the growing proletarization doctor's work in Marxist concepts, regarding capital and economy.

 

 

 

KEYWORDS: Work. Health. Proletarization.

 

 


NOTAS


 




[1] . Acesso em 01 de dezembro de 2012.
[2] . Acesso em 12 de dezembro de 2012.
[3] Este conceito aparece nos escritos de Marx, especialmente na obra Trabalho Assalariado e Capital. < http://www.marxists.org/portugues/marx/1849/04/05.htm>. Acesso em 28 de dezembro de 2012.
[4] Machado, Maria Helena. Os Médicos no Brasil: um retrato da realidade. Ed. FIOCRUZ, 1997, p. 106.
[5] IV Congresso EndoRio, Hotel Windsor, Conferência: Responsabilidade civil e o erro Médico, conferencista: Marcos Carnevale. 11 a 12 de setembro de 2009.
[6] A 1ª - Associação das Vítimas de Erros Médicos – AVERMES foi fundada no Rio de Janeiro: ano 1991. A 2ª associação - Associação das Vítimas de Erros Médicos de São Paulo – foi fundada em São Paulo: ano 2000.
[7] Ibden., p. 45.
[8] <http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/condicaodevida/ams/comentarios.pdf>. Acesso em 28 de dezembro de 2012
[9] < http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2012/12/programa-incentiva-medicos-atender-em-regioes-carentes.html>. Acesso em 05 de janeiro de 2013.
[10] Machado, Maria Helena. Os Médicos no Brasil: um retrato da realidade. Ed. FIOCRUZ, 1997, p. 29
[11] Santos, Tania Steren dos. Considerações sobre mudanças na profissão médica e diferenciações ocupacionais no interior de um Hospital Universitário (HCPA). www.sbsociologia.com.br. Acesso em 28 de dezembro 2012, p. 7.
[12] <http://www.cps.fgv.br/ibrecps/iv/midia/lc012.pdf>. Acesso em 13 de dezembro de 2012.
[13] Quintaneiro, Tania Et all. Um Toque de Clássicos: MARX, DURKHEIM e WEBER, Ed. UFMG, 2003, p. 38.
[14] Ibden., p. 49 e 50.
[15] < http://pt.wikipedia.org/wiki/Teoria_do_Medalh%C3%A3o>. A figura do medalhão é empregada analogamente, ou seja, assim como o medalhão trata-se distintivo – aquilo que se mostra para ser distinguido – a pessoa que assume essa posição se comporta de tal modo que é diferenciada das demais. No jargão médico Medalhão é como ficou conhecido aquele profissional médico, antigo, com muita experiência, que transitava entre o consultório e a Universidade, como professor.