A
PROLETARIZAÇÃO DO TRABALHO MÉDICO
RESUMO
O
estudo deste tema objetivará esclarecer os contornos do mercado de trabalho do
médico. Empreenderemos uma análise sobre as mudanças no contexto do trabalho
deste profissional e as tendências deste mercado, abordando a visão sobre a
transição que vem ocorrendo, deixando este trabalhador de ser o típico
profissional liberal para uma condição de assalariado, evidenciando o caminho
crescente da proletarização do trabalho do médico nos conceitos marxistas,
quanto ao capital e economia.
PALAVRAS-CHAVE:
Trabalho. Saúde. Proletarização.
INTRODUÇÃO
A profissão do médico sempre teve
um papel importante ao longo da história de todas as sociedades. As exigências
de uma formação longa que envolve vários anos de estudos, de prática, combinadas
ao denso conhecimento teórico e com um aprendizado empírico que se renova
periodicamente, tiveram como natural contrapartida o reconhecimento pela sociedade
de sua essencialidade para a humanidade. As doenças e o medo da morte
contribuíram para consolidar a sua importância e poder, gerando na sociedade
crenças onde, para uns era um “santo”, um entregador de “dádivas”, para outros,
especialmente os mais humildes, um verdadeiro “deus capaz de trazer o doente de
um estado de quase morte para vida”.
Estudos apontam que, a partir
de meados do século XX, começa o declínio da profissão de médico como carreira
liberal. O século anterior, período de uma medicina ainda em fase de transição
para a especialização, marca o predomínio de um atendimento realizado principalmente
no consultório particular, não acessível à grande maioria da população. Era o
conhecido “médico da família”.
A prática e o próprio conceito
de saúde pública são fenômenos recentes, mesmo nos países desenvolvidos. Aliás,
a definição mais corrente e aceita de saúde pública é de Edward Amory, médico
americano, que em 1920 definiu saúde pública como “o controle das infecções, o
saneamento do meio, a educação dos indivíduos nos princípios da higiene
pessoal, a organização dos serviços médicos e de enfermagem para o diagnóstico
precoce e o pronto tratamento das doenças e a criação de uma estrutura social
que assegure a cada indivíduo na sociedade um padrão de vida adequado à
manutenção da saúde” [1].
A saúde pública praticamente
inexistiu no Brasil nos tempos de colônia. Em 1789, registros históricos
apontam que o Rio de Janeiro tinha apenas quatro médicos e as duas primeiras
escolas de medicina do país foram criadas em 1808 com a vinda da família real
portuguesa, sendo esta única ação governamental em prol da saúde da população
até a República.
Mais adiante, com o advento da
Lei Orgânica da Previdência Social, de 1960, e a criação do Instituto Nacional
de Previdência Social em 1967, que unificou os Institutos de Aposentadoria e
Pensões (os IAPs) marcam o início da assistência massiva à saúde dos cidadãos
em geral, via aporte de recursos públicos, ainda que tímido e insuficiente para
as reais necessidades da população.
Naquela época, ainda existia a
mazela da discriminação entre o campo e a cidade e algumas outras categorias. Apenas
os trabalhadores integrantes da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) foram
beneficiados, ficando de fora os trabalhadores rurais, os servidores públicos e
os empregados domésticos. Principalmente os trabalhadores rurais, por muitos
anos estiveram excluídos de qualquer auxílio sistemático à saúde. Somente à
partir de 1963 passaram a ter direito à aposentadoria e a uma tímida e
insuficiente assistência via o FUNRURAL (Fundo de Assistência ao Trabalhador
Rural).
A criação do Sistema Único de
Saúde (SUS), com a Constituição de 1988, estendeu os benefícios assegurados
apenas aos participantes do Instituto Nacional de Assistência Médica da
Previdência Social (INAMPS) a toda população brasileira. Entretanto, a verdade
é que isso aconteceu apenas formalmente. O direito aos serviços e a assistência
à saúde passaram, pelo menos constitucionalmente, a ser um direito de todo
cidadão. Estas garantias passaram, então, a dar nova conotação ao comportamento
da sociedade que, não se conformando hoje com a situação que se encontram os
serviços de saúde, começaram a buscar uma maneira de exigir que a saúde lhe
seja entregue, empurrando o médico, de “santo” ou “deus”, ao vilão da história.
O lento processo de
desenvolvimento da saúde pública no Brasil começou então a se deparar com as
radicais mudanças ocorridas na ciência médica nas últimas décadas. A medicina
tornou-se dependente de outras áreas de conhecimento. A notável evolução da
genética, da biologia, da indústria farmacêutica, da engenharia e da
informática foi incorporando parcelas crescentes de capital e de tecnologia às
práticas médicas. A rápida especialização e as crescentes necessidades de
aportes de capital e os investimentos de grandes operadores capitalistas da
área da saúde foram deslocando o conhecimento, a experiência e o trabalho
médico do consultório para a Instituição de Saúde.
Embora imprescindível e
essencial, o médico foi se adaptando às mudanças do novo modo de produção do
serviço médico, cada vez mais dependente de novas tecnologias e de equipamentos
complexos e de instituições de grande porte. O capital assume então crescente importância
no custo do serviço, empurrando a atividade médica do seu caráter individual de
cunho liberal para o trabalho especializado, coletivo e assalariado. O médico
profissional liberal, símbolo de uma pequena burguesia outrora bem sucedida,
entra em declínio e, em apenas poucas décadas, perdeu espaço para as grandes
corporações de medicina e saúde.
Assim, as mudanças no mercado
de trabalho, provocadas pela reestruturação produtiva a partir dos anos 80, vêm
afetando diversas categorias profissionais, incluindo os de saúde. Diante
disso, o que vemos é que os médicos que tinham alcançado um status elevado entre
os profissionais de outras categorias, tem se submetido na atualidade a
processos de precarização nas relações de trabalho. E, submetendo-se ao
assalariamento, isso vem afetando sua histórica autonomia empregatícia. O
objetivo deste trabalho, portanto, é apontar e explorar com dados empíricos
este processo de assalariamento da profissão do médico, para evidenciar no que
tem afetado esta transformação e a sua relação com a sociedade capitalista em
que hoje vivemos, sob a ótica marxista.
1. AS MUDANÇAS NO MERCADO DE TRABALHO
1.1. Perfil e Tendências do Profissional Médico
O mundo do trabalho nas
ultimas décadas passa por mudanças em todos os âmbitos, as quais provocaram inúmeros
reflexos em outros setores da sociedade, especialmente no exercício de várias
profissões. O desemprego estrutural, provocado muitas vezes pelo surgimento de
novas tecnologias, repercute na diminuição da oferta de trabalho e na reconfiguração
de postos de trabalho.
Nenhuma categoria profissional
ficou imune às transformações resultadas da reestruturação produtiva e o perfil
do trabalhador, em geral, é alvo de alterações. Os profissionais da área de
saúde também sofrem as consequências destas transformações produtivas,
incluindo os médicos, que estão se submetendo a processos de crescente assalariamento
e relações de mercado autônomas “atípicas”, em razão das formas de tomada de
serviços médicos que, em muitos casos, nem configuram um trabalho liberal mas,
tão pouco, uma relação de emprego formal. Muito se sujeitam a uma forma de
assalariamento fictício, onde são convidados a fazer parte de uma sociedade ou
cooperativa, mas, na verdade, trabalham por um salário. Tal relação de emprego
fictícia, a princípio, só é boa para o empresário da saúde, que diminui a carga
de impostos incidentes sobre o negócio.
Tais formas de tomada de
serviços médicos têm algumas especificidades, se comparado com os de outras
categorias. A autorregulação inerente a estes profissionais produzem várias categorias
de assalariamento, criadas para se adaptarem à natureza da profissão, que a
torna particular pelo fato de em alguns casos manter autonomia no exercício
laboral, mediante uma relação salarial com inúmeras configurações, como a acima
mencionada, graças a flexibilidade deste profissional, legalmente considerado
profissional liberal. Entretanto, estas mudanças nas relações de trabalho de um
profissional considerado de maior status na área de saúde afetarão, consequentemente,
todo o sistema de saúde e os tomadores destes serviços, neste caso, a população
em geral.
Uma pesquisa coordenada em
1996 pela socióloga Maria Helena Machado apresenta um perfil e tendências da
profissão do médico no Brasil, e discutiu aspectos inéditos e importantes sobre
as transformações desta categoria. Esta pesquisa retratou o profissional de
Medicina por intermédio de uma amostra significativa. Com base em informação
captada nessa pesquisa, foram retiradas algumas configurações importantes da
classe médica que servem para indicar tendências que vem se moldando[2]:
“Em
números, o mercado de trabalho médico do Brasil tem a seguinte estrutura: 69,7%
dos médicos têm atividade no setor público (seja na esfera federal, estadual ou
municipal), apresentando regionalmente a seguinte distribuição: norte (82,4%);
nordeste (81,1%); sudeste (66,8%); sul (63,9%) e centro-oeste (74,7%).
Por
outro lado, 59,3% trabalham no setor privado, sendo 51,3% na região norte,
55,8% no nordeste, 59,9% no sudeste, 61,7% no sul e 59,9% no centro-oeste. Além
disso, no Brasil, 74,7% exercem atividade "liberal" em seus
consultórios privados, principalmente do tipo "próprio individual"
(sendo 72,3% no norte, 69,5% nordeste, 73,9% no sudeste, 84,2% no sul e 72,9%
no centro-oeste). Tais cifras demonstram um mercado de serviços equilibrado
entre os três setores de atuação médica. Os dados evidenciam também o
multiemprego, para a maioria. Além disso, 13,5% dos médicos brasileiros
declararam ter outra fonte de renda além da Medicina. Já nas regiões, a questão
de "outra fonte de renda" tem o seguinte comportamento: região norte
(14,5%), nordeste (14,2%), sudeste (12,4%), sul (15,8%) e centro-oeste (16,3%).
Salienta-se
que no Brasil, 75,6% dos médicos têm até três atividades e 24,4% apresentam-se
com quatro ou mais atividades profissionais médicas, comportamento este
observado em todas as regiões. O consultório destaca-se como a modalidade de
trabalho que mais se vincula à tradicional condição de "profissional
liberal". No entanto, se os percentuais são elevados (entre 70 e 85% para
todas as regiões do país), isto não significa, necessariamente, o exercício
pleno da atividade liberal, visto que entre 75 e 90% dos médicos das regiões
brasileiras declaram depender diretamente dos convênios com empresas de saúde, medicina
de grupo, cooperativas médicas, entre outros, para a manutenção de seus consultórios
em funcionamento. Fato curioso é a
questão do gênero na determinação desta modalidade de trabalho médico, já que
apenas 29,4% dos que têm atividade em consultório são mulheres. Por outro lado,
dentre aqueles que exercem atividade em consultório, pouco menos da metade
(45,2%) tem menos de 40 anos.
Quanto
ao rendimento mensal proveniente do trabalho médico (Tabela 3.2), a média
nacional é de US$1.280, sendo US$ 1.163 (nas capitais) e US$ 1.600 (nos
interiores). A renda mensal desejada pelos médicos foi de US$4.608 dólares,
sendo US$4.240 (nas capitais) e US$5.575 (nos interiores). O piso salarial
sugerido para uma jornada de 20 horas semanais (US$1.381), sendo maior nas
capitais (US$1.412) do que nos interiores (US$ 1.320). Da mesma forma, a
questão salarial e de rendimentos dos médicos varia de região para região.
Os
valores modais de renda mensal declarada foram de US$ 1.429,8 para a região
norte; US$1.250,3 para o nordeste; US$ 1.252,1 para o sudeste; US$ 1.400,6 para
o sul e US$ 1.371,1 para o centro-oeste.
Por
outro lado, a renda mensal desejada apresentou as seguintes modas: norte (US$
5.409,7), nordeste (US$ 4.362,4), sudeste (US$ 4.350,7), sul (US$ 4.745,8) e centro-oeste
(US$ 5.988,4) e o piso salarial proposto, oscilou de US$ 1.464,1 (norte) até
US$ 1.216,2 (nordeste), US$ 1.415,2 (sudeste); US$ 1.302,7 (sul) e US$ 1.464,8
(centro-oeste).
Resumindo, o estudo apresenta tendências
que vem se confirmando, tais como, que o médico atualmente transita em empregos
públicos mais que privados; que, cada vez mais, assume multiempregos em busca
de maior renda, pois é clara, segundo a pesquisa, a discrepância entre o
salário almejado e o salário real oferecido pelo mercado; tende a exercer a
profissão cada vez mais jovem e, outro dado a observar, é que a crescente
participação do contingente feminino é inevitável.
Isto posto, seria plausível
estabelecermos uma relação entre a insatisfação do médico com a diminuição da
renda em seus consultórios e o vínculo empregatício assumido por estes dentro
dos hospitais ou sociedades médicas corporativas e, finalmente, como essa tendência
de caráter sócio econômica afeta a vida daqueles que tomam o serviço médico, ou
seja, a população em geral.
1.2. Médico: Profissional Liberal ou com Vínculo Empregatício
Lamentavelmente, não há registro
de atualização da pesquisa acima. Entretanto, ela é suficiente para suportar atualmente
a tese de que pode estar havendo uma crescente proletarização[3]
do médico, ou seja, uma dependência cada vez maior por parte desses
profissionais de um “emprego” que lhes garanta um salário determinado, em
detrimento ao consultório, que o caracteriza como profissional liberal.
Ainda, uma das discussões que
está em pauta é sobre que vínculos fazem do médico um assalariado, um autônomo
ou um profissional liberal. Maria Helena Machado afirma, por exemplo, que “no
mundo do trabalho médico é praticamente impossível propor análises de tipos
puros (assalariado ou liberal)”[4].
Na verdade, se em um passado recente,
o médico era totalmente autônomo na sua conduta profissional, no saber e nos
procedimentos com o paciente, nos dias atuais, vários são os fatores que põem
em xeque sua autonomia e independência. Empurrado pela força econômica de
diversos atores da área da saúde, especialmente os planos de saúde,
cooperativas e grandes grupos hospitalares, o médico tem deixado de ser um
profissional que exerce o controle sobre sua clientela e autorregula o seu
trabalho, tornando-se, cada vez mais, dependente de uma estrutura de serviços e
equipamentos de grande porte.
É inegável que o médico parece
continuar sendo autônomo no modo de exercitar o seu trabalho através do
conhecimento que possui. Mas, a cada dia, tende a ser assalariado, tanto do
setor público, quanto do setor privado, por ter que obedecer as regras e normas
inerentes a cada entidade institucional a que se vincula. Importante é, também,
observar que o setor privado possui parcerias com o setor publico, o que, muitas
vezes, dificulta caracterizar determinadas situações empregatícias, bem como
definir a proveniência da renda deste profissional de saúde.
Uma questão muito peculiar
neste tema é a dos planos de saúde e suas formas de remunerar, que são
variadas. Há uma queixa muito grande dos médicos, e alguns não aceitam filiação
a quaisquer planos, alegando que não compactuam com o desrespeito destas
instituições, que não valorizam o trabalho do médico.
Entretanto, de fato, os planos
de saúde se tornaram agenciadores e grandes concorrentes dos consultórios, já
que arrebanham hoje uma parcela considerável daqueles que poderiam pagar por
uma consulta privada. Além disso, estes planos estão construindo seus próprios
hospitais, clínicas e laboratórios, para forçar os clientes a procurar suas
instalações, canalizando o cidadão que toma o serviço médico, da medicina
privada para a medicina institucional.
Assim, é importante ressaltar
que o médico que não quer ser “empregado” ou estar vinculado a um plano de
saúde, enfrenta forte concorrência para sua sustentabilidade apenas com o
trabalho em seu consultório.
2. O CONTEXTO DO EXERCÍCIO PROFISSIONAL
A medicina que se caracterizou
ao longo da história como uma profissão com elevado status na hierarquia
social, com alto prestígio do profissional liberal, que teve sempre grande
destaque nos diversos campos que compõem o tecido social, vem enfrentando nos
últimos anos uma realidade que vem mudando este contexto, observando-se atualmente
uma crescente perda de autonomia, uma tendência ao assalariamento e também
ampliação da medicina de grupo e das cooperativas de assistência.
Grande parte destas mudanças
são proporcionadas por um investimento massivo de empresas privadas,
principalmente das corporações multinacionais, planos de saúde e empresários no
campo da saúde. Acrescente-se a isso a expansão dos serviços estatais e a
influência das políticas públicas no mercado de trabalho médico. Também as
transformações atuais na informática e as descobertas técnico-científicas
impulsionam ao mesmo tempo ao aparecimento de inúmeras especialidades e subespecialidades,
o que gera importantes reestruturações na formação e prática profissional.
A formação e a prática profissional
é outra das interferências nas mudanças que o mercado de trabalho vem sofrendo.
A medicina passou a incorporar, graças a novas tecnologias de diagnósticos, os
especialistas, e, assim, criou projetos pedagógicos para estender a formação
médica através da residência médica, para a respectiva especialização. Este sistema
é altamente interessante para os hospitais, que passam a ter um corpo clínico
permanente e extremamente dedicado e de baixo custo, ávido por praticar e
aprender para tentar se inserir no mercado de trabalho.
Entretanto, graças a estas
especializações, aos avanços tecnológicos dos dias atuais e das técnicas de
diagnósticos para o auxilio dos procedimentos médicos, há também uma crescente responsabilidade
do profissional sobre os resultados desejados, positivos, claro, onde a
cobrança pelo êxito é muito grande.
Isso tem afastado o paciente e
o médico, e, a verdade é que, um atendimento desatencioso e impessoal, baseado
em muitos exames, frustra mais as expectativas do tomador do serviço do que os
próprios resultados indesejáveis do tratamento. Ademais, acrescente-se a isso,
o fato de que, atualmente, os pacientes estão mais informados e menos submissos
à autonomia que o médico gozava há décadas atrás, em relação aos diagnósticos
feitos por ele. Isso tem gerado, tantas vezes, uma repercussão negativa de seu
trabalho como médico, refletida na vida profissional, pessoal, e familiar.
Neste contexto o médico carrega
o drama de que é um dos profissionais que dificilmente pode errar pois, pelo
fato de trabalhar com a vida humana, um erro pode ser fatal para o paciente e
para sua carreira. Na realidade, vale ressaltar, que a grande maioria que
clinica vive hoje sob pressão, sobretudo do ponto de vista jurídico. Hoje há
advogados especializando-se em causas contra médicos.
Apenas para ilustrar, pesquisa
realizada nos Tribunais de Justiça dos Estados do Rio de Janeiro e São Paulo, apresentada
no IV Congresso EndoRio, em Conferência sobre o tema Responsabilidade Civil e o
Erro Médico, em 11 e 12 de setembro de 2009[5],
demonstram que até meados dos anos 2000, praticamente não existiam as chamadas
ações indenizatórias por erro médico e, após uma mobilização da sociedade, que
criou as associações de pacientes vitimas de erro médico[6],
que se sentiam lesados pelo serviço prestado, estas demandas jurídicas
cresceram exponencialmente.
Nesta pesquisa apenas foi
possível mapear os dados de processos por má prática médica, que tiveram
recursos a 2ª instância destes tribunais, já que ainda não existem estatísticas
para a 1ª instância. Supõe-se que o número de processos que não chegam a ter
recursos, ou seja, são resolvidos logo no primeiro julgamento, sejam pelo menos
10 vezes mais do que os que chegam ao segundo julgamento. O Estudo pesquisado
apontou um crescimento percentual para São Paulo de 204% de aumento entre 2003
e 2008. E para o Rio de Janeiro o aumento foi de mais de 800% entre os anos de
2000 a 2008.
Entre outras das
características mais salientes do processo de transformação do mercado de
trabalho médico, está a urbanização, o rejuvenescimento e a maior participação
das mulheres nesta categoria de profissionais.
Quanto a concentração desta
força de trabalho, cada vez mais os médicos se concentram em alguns estados do
Brasil e nas grandes cidades, enquanto inúmeros municípios do país não têm sequer
um desses profissionais. “Aproximadamente 80% do total de médicos existentes
exercem suas atividades em somente sete estados e, principalmente, nas grandes
cidades”. Maria Helena Machado aponta, também, nas suas análises, conforme
visto no item anterior, o aumento do contingente de médicos e médicas jovens no
mercado de trabalho, pois atualmente 70% dos profissionais têm menos de 45 anos
de idade. Eles ingressam no mercado de trabalho, na sua maioria, entre 26 e 28
anos e somente 10% têm mais de 60 anos, o que caracteriza uma pirâmide etária
predominantemente jovem na profissão. A tendência à feminilização da carreira
médica no Brasil (aproximadamente 50% dos alunos dos cursos de residência
médica são mulheres) é um fenômeno que se observa também em diversos países.”[7]
O mercado de trabalho médico,
na sociedade capitalista brasileira, tem sido regulado crescentemente por
diversos agentes intermediários entre o profissional e os tomadores dos
serviços de saúde, evidenciando um crescente processo de assalariamento, ou proletarização
dos profissionais. O próprio Estado constitui-se cada vez mais numa das
principais instâncias empregadoras dos profissionais, que buscam uma
aposentadoria de acordo as normas empregadas para os servidores públicos, que
são diferenciadas do resto da população no que tange ao valor do salário teto
de aposentadoria.
No Brasil a política de
universalização e descentralização do sistema de saúde, instituído pela
Constituição Federal de 1988, através do Sistema Único de Saúde (SUS), gera uma
maior expansão dos empregos em todos os municípios. Os hospitais e postos de
saúde são hoje um dos principais locais de inserção da força de trabalho na
área da saúde em nível nacional.
Segundo dados do senso de 2002
do IBGE entre 1992 e 2002, houve, no país, um incremento da ordem de 46% no
número de postos de trabalho médicos nos estabelecimentos públicos, chegando a
115% na Região Norte.
Fonte:
Adaptado de - Pesquisa Assistência Médico-Sanitária
O governo até tenta modificar
esta situação de concentração de profissionais, incentivando a interiorização
através de programas que oferecem salários de até R$ 8.000,00[9],
mas, parece que tais programas de bolsas não tem sido suficientes para resolver
o desequilíbrio na oferta de profissionais pelo país.
Alie-se a isso o investimento
massivo das corporações privadas e dos planos de saúde que arrebanham os
profissionais para dentro de suas instituições, especialmente aqueles recém-formados
que não dispõem de recursos para empreender uma carreira liberal em consultório
e não querem deixar seus municípios de origem.
No que concerne a atividade em
consultório particular, ainda há o fato de que, devido aos problemas
financeiros de grande parte da população, que encontra dificuldades para pagar
consultas particulares e os próprios planos de saúde, deixaram de procurar os
consultórios particulares e passaram a procurar atendimento nos hospitais
públicos, desequilibrando a relação demanda-oferta destes serviços e, por
consequência, inúmeros profissionais enfrentam problemas para manter os custos
operacionais dos consultórios, o que os tem levado a buscar outra alternativa,
a de dividir as despesas com colegas ou até mesmo a fechar as portas.
Outro fator que gera um
impacto importante no mercado de trabalho médico é a crescente incorporação de
novas tecnologias no processo de produção dos serviços. O elevado custo dos
equipamentos mais modernos fez com que a prática individual fosse substituída
cada vez mais pelo trabalho grupal. Surge a medicina de grupo, atualmente oferecendo
possibilidades de inserção a um grande contingente de médicos.
A maioria dos profissionais,
especialmente os recém-chegados ao mercado de trabalho, está assinando
convênios com empresas privadas ou cooperativas, ou assumindo uma condição de
sócio, fictícia, de determinado grupo corporativo de prestação de serviços de
saúde, pois estas apresentam-se como as possibilidades de inserção no mercado
de trabalho e de remuneração razoável, a curto prazo, mesmo que o retorno
financeiro seja menor que nas formas tradicionais do exercício profissional
liberal.
Ao comentar sobre a situação
dos médicos no mercado de trabalho, Machado focaliza a questão da perda gradual
de autonomia do profissional. De acordo com a autora, verifica-se, na
atualidade, uma “progressiva perda de propriedade e ou controle, pelo produtor
direto, dos meios de produção”[10]
e a proliferação de novas formas de distribuição e concentração desses meios,
com maior expansão do trabalho assalariado.
O assalariamento se expande
cada vez mais, transformando a imagem do profissional liberal autônomo. Este,
que costumava garantir a sua independência através do domínio da informação, da
posse de recursos materiais e técnicos próprios e da captação de uma clientela
cativa, tem observado uma mudança rápida nos últimos anos e as novas gerações
de médicos vem realizando sua formação inseridos nesse novo contexto.
Assim, o que vemos é que o
assalariamento representa uma reorientação social do trabalho médico,
constatando-se a substituição de uma clientela seletiva particular, pela massa
da população urbana. É importante compreender também que está em andamento um
processo de eliminação do “modelo artesanal de atividade médica”, forma que
caracteriza a medicina liberal, “através da crescente separação entre o
produtor direto e uma significativa parcela de seus meios de produção, com a
correspondente substituição da troca direta entre produtor e consumidor pela
venda da força de trabalho no âmbito de um sistema de produção estatal ou
privado de serviços de saúde”[11].
Analisando os diversos
interesses e a correlação das forças econômicas, institucionais e empresariais,
é possível encontrar os fatores explicativos para as novas configurações da
profissão médica nos dias de hoje. Vemos que os profissionais mais antigos
ainda resistem, mantendo seus consultórios, mas inúmeros deles tem algum
vínculo institucional, seja público ou privado, para melhorar sua renda e,
quanto aos profissionais mais jovens, estes encontram crescentes limitações
para aceder aos instrumentos de trabalho e à clientela, reduzindo seu poder de
barganha diante das empresas que estipulam o preço do seu trabalho, não
deixando alternativa se não o emprego.
Outro fator importante é a
ampliação cada vez maior do número de alunos formados nas faculdades de
medicina, onde, segundo o Ministério da Educação a cada ano no Brasil quase 13
mil alunos se formam em medicina. O Conselho Federal de Medicina indica que
hoje existem mais de 371.074 médicos no país e que há uma
concentração excessiva nas capitais e no litoral. Na Região Sul e Sudeste estão
concentrados cerca de 70% dos médicos do país.
Todos estes fatores demonstram
claramente que há, cada vez mais, profissionais disponíveis, e que há uma super
oferta de profissionais nas capitais, o que acirra a competição pelas vagas
disponíveis.
Uma situação de trabalho
igualmente importante dentro do processo de transformação do mercado de
trabalho médico é a questão da remuneração. A carreira de médico continua sendo
muito procurada por jovens de todo país, pois o exercício da profissão, em
comparação às outras profissões liberais, ainda é a que melhor remunera. Pesquisa
realizada pelo Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas
confirma que a profissão de maior remuneração entre as profissões de nível
superior é a medicina, que apresenta uma renda salarial média para os
portadores do título de doutor em torno de R$ 8.966,07 e R$ 6.705,00 para graduados,
enquanto as demais profissões oscilam em torno de R$ 5.000,00 para doutores e
R$ 3.500,00 para graduados[12].
A profissão médica é também a
que apresenta maior jornada, em torno de 52 horas semanais, enquanto as jornadas
de trabalho das demais profissões giram em torno de 42 horas semanais. A
explicação para isso, tanto para os maiores salários, quanto o excessivo número
de horas trabalhadas, é que o médico tem maior facilidade em manter vários
vínculos empregatícios, além da manutenção de consultório particular, o que
permite uma maior remuneração, mas também lhe impõe um ritmo extenuante de vida.
Nessa situação de trabalho,
ocasionada pelas mudanças de mercado ora mencionadas ao longo do escrito, o
médico passa a ser, também, um trabalhador coletivo, e se encaixa no contexto do
pensamento de Marx. Ele “reflete sobre o significado - para o indivíduo e a sociedade
- da apropriação por não-produtores (pessoas, empresas ou o Estado)”, neste
caso pelas grandes instituições, hospitais e corporações, que investem na
mercadoria saúde, “de uma parcela do que é produzido socialmente, e desenvolve
sua concepção de classe, exploração, opressão e alienação.”[13]
O fundamento da alienação,
para Marx, encontra-se na atividade humana prática: o trabalho. Marx faz
referência principalmente às manifestações da alienação na sociedade
capitalista. Segundo ele, o fato econômico é “o estranhamento entre o
trabalhador e sua produção” e seu resultado é o “trabalho alienado, cindido”
que se torna independente do produtor, hostil a ele, estranho, poderoso e que,
ademais, pertence a outro homem que o subjuga, o que caracteriza uma relação
social.
A teoria Marxista, que aqui a
refletimos sobre a atividade médica e o impacto sócio econômico que provoca, se
encaixa perfeitamente a situação da proletarização do trabalho do médico, Marx “sublinha
três aspectos dessa alienação: 1) o trabalhador relaciona-se com o produto do
seu trabalho como algo alheio a ele, que o domina e lhe é adverso, e
relaciona-se da mesma forma com os objetos naturais do mundo externo; o
trabalhador é alienado em relação às coisas; 2) a atividade do trabalhador
tampouco está sob seu domínio, ele a percebe como estranho a si próprio, assim
como sua vida pessoal e sua energia física e espiritual, sentidas como
atividades que não lhe pertencem; o trabalhador é alienado em relação a si
mesmo; 3) a vida genérica ou produtiva do ser humano torna-se apenas meio de
vida para o trabalhador, ou seja, seu trabalho - que é sua atividade vital
consciente e que o distingue dos animais - deixa de ser livre e passa a ser
unicamente meio para que sobreviva. Portanto, “do mesmo modo como o operário se
vê rebaixado no espiritual e no corporal à condição de máquina, fica reduzido
de homem a uma atividade abstrata e a um estômago”. Por outro lado, o trabalho
produtivo acaba por tornar-se uma obrigação para o proletário, o qual, não
sendo possuidor dos meios de produção, é compelido a vender sua atividade
vital, que não é para ele mais do que um meio para poder existir.”[14]
Vimos de forma clara os efeitos
dessas transformações no contexto do trabalho médico, cujo produto do trabalho
pertence a outro (instituições médicas e hospitais), numa relação da medicina
com as corporações médicas, e a transformação da força de trabalho em
mercadoria, onde a consequência é que o produto do trabalho do médico, a cura
ou a saúde, vem se transformando em mercadoria, impulsionando a economia da
saúde.
CONCLUSÃO
Podemos perceber nesta análise
das transformações do mercado de trabalho do médico, que o excesso de
profissionais disponíveis e sua alta concentração nas grandes cidades acirram a
competição pelo mercado de trabalho, empurrando o médico a aceitar cada vez
menores salários e a submeter-se a esta situação para conseguir a tão almejada
inserção no mercado de trabalho.
Que o capital investido na
economia da saúde, trazido pelos empresários do setor, tem deixado o
profissional sem alternativa, que, oprimido pelo modelo econômico, vai deixando
a profissão liberal, inserindo-se naquilo que podemos chamar de operário da
saúde.
Nos últimos anos, para tentar atingir
um determinado padrão salarial almejado, o profissional vem aumentando a sua
carga de trabalho entre inúmeros afazeres que compreendem cada vez mais uma menor
clientela particular no consultório e mais dois, três ou até quatro empregos de
em média 20 horas semanais. E, como é humanamente impossível atender a tantos
encargos, o resultado é a ausência e falta de profissionais nos postos de
saúde, nas emergências e nos hospitais, uma menor dedicação a estudos e
atualizações e um consequente aumento no número de erros, gerando nos conselhos
regionais de saúde, e nas instâncias judiciais, frequentes reclamações sobre o
trabalho do médico, piorando a avaliação do serviço prestado.
Em fim, parece evidente que os
médicos vivem hoje um difícil momento de transição da profissão, com um grande
número de profissionais tentando resistir em deixar o status de profissional
liberal, daquele bem sucedido “medalhão”[15],
que do seu consultório tudo comandava para a entrega do produto saúde, para o
trabalho assalariado, passando a condição de proletário e de dependência de um
patrão capitalista, que lhe explora em troca de um salário fixo e outros
benefícios legais, ou até mesmo de empregos públicos, que lhe garantam uma
aposentadoria.
SOCIOLOGY:
PROLETARIZATION OF MEDICAL JOB
ABSTRACT
The theme of this study aim to clarify the contours of the physician
labor market. W’ll undertake an analysis of the changes in the context of the
work for medical professional and trends in this market, addressing the vision
of the transition that has been taken place, physician are leaving this work
typically performed in private practice becoming
a employed professional, showing the growing proletarization doctor's work in
Marxist concepts, regarding capital and economy.
KEYWORDS: Work. Health. Proletarization.
NOTAS
[1] . Acesso em 01 de dezembro de 2012.
[2] .
Acesso em 12 de dezembro de 2012.
[3] Este conceito aparece
nos escritos de Marx, especialmente na obra Trabalho Assalariado e Capital.
< http://www.marxists.org/portugues/marx/1849/04/05.htm>.
Acesso em 28 de dezembro de 2012.
[4] Machado, Maria Helena. Os
Médicos no Brasil: um retrato da realidade. Ed. FIOCRUZ, 1997, p. 106.
[5] IV Congresso EndoRio,
Hotel Windsor, Conferência: Responsabilidade civil e o erro Médico,
conferencista: Marcos Carnevale. 11 a 12 de setembro de 2009.
[6] A 1ª - Associação das Vítimas de Erros Médicos – AVERMES foi fundada no Rio de
Janeiro: ano 1991. A 2ª associação
- Associação das Vítimas de Erros Médicos de São Paulo – foi fundada em São
Paulo: ano 2000.
[7] Ibden., p. 45.
[8] <http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/condicaodevida/ams/comentarios.pdf>. Acesso em 28 de dezembro de 2012
[9] < http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2012/12/programa-incentiva-medicos-atender-em-regioes-carentes.html>.
Acesso em 05 de janeiro de 2013.
[10] Machado, Maria Helena. Os
Médicos no Brasil: um retrato da realidade. Ed. FIOCRUZ, 1997, p. 29
[11] Santos, Tania Steren dos. Considerações sobre mudanças na profissão médica e diferenciações ocupacionais no
interior de um Hospital Universitário (HCPA). www.sbsociologia.com.br.
Acesso em 28 de dezembro 2012, p. 7.
[12] <http://www.cps.fgv.br/ibrecps/iv/midia/lc012.pdf>. Acesso em 13 de dezembro de 2012.
[13] Quintaneiro, Tania Et
all. Um Toque de Clássicos: MARX,
DURKHEIM e WEBER, Ed. UFMG, 2003, p. 38.
[14] Ibden., p. 49 e 50.
[15] < http://pt.wikipedia.org/wiki/Teoria_do_Medalh%C3%A3o>.
A figura do medalhão é empregada analogamente, ou
seja, assim como o medalhão trata-se distintivo – aquilo que se mostra para ser
distinguido – a pessoa que assume essa posição se comporta de tal modo que é
diferenciada das demais. No jargão
médico Medalhão é como ficou conhecido aquele
profissional médico, antigo, com muita experiência, que transitava entre o
consultório e a Universidade, como professor.
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